segunda-feira, 31 de março de 2014

Frio na barriga

- Topei
- Topou?
- Sim. Pode parecer loucura, mas estou numa fase da minha vida em que não tenho nada a perder
- Isso é verdade
- Anos casada, três filhos, trocada por uma menina com metade da minha idade, aquela rotina, sabe?
- Fora que...
- O que?
- O Carlos era contador
- Pois é
- Devia seguir um protocolo na rotina de vocês
- Em todos os momentos. Todos
- Acredito
- Agora quero experiências que me dêem frio na barriga
- Estou feliz por você
- E o Antônio é músico, performer, vinte anos, mora numa república, tatuagens por todo o corpo
- Será uma experiência incrível
- Imagino que sim. Loucura
- Aonde vocês vão?
- Não sei. Ele disse que seria surpresa. Vai me buscar às oito, de bicicleta
- Prepare-se, prepare-se
- Imagino que iremos a alguma peça de teatro alternativa, comeremos comida vegetariana em algum boteco perto da faculdade dele, sei lá. Frio na barriga
---
- Ana, estou te esperando aqui em baixo
- Estou descendo
- Boa noite, você está linda
- Taxi?
- Uhum. E estas flores são para você
- Rosas? Vermelhas?
- Não gostou?
- Sim, sim. Muito, demais
- Aonde vamos?
- Era uma surpresa. Mas vou dizer, vamos ao restaurante novo do Plaza. Economizei o mês todo e quero que a noite seja inesquecível.
- Ah ta. Moço, dá meia volta, por favor?
- O que foi?
- Frio na barriga

domingo, 30 de março de 2014

Farofa de caviar

- Mamãe, me conta uma história
- Claro
- Sobre reinos encantados
- Está bem...
"Era uma vez uma menina linda, chamada Helena. Ela tinha cabelos negros, olhos verdes e seus pais, o rei e a rainha, a amavam demais. Para que pudesse assumir o reino, Helena desde pequena teve acesso a uma educação diferenciada e portanto, acordava cedo para estudar em um colégio nobre, enquanto que suas tardes eram preenchidas com atividades essenciais, como natação, balé, capoeira e equitação. Nos cursos, ela e suas colegas - todas futuras rainhas - eram acompanhadas de perto por seus pais, que aplaudiam cada pliê, sonhando com um futuro promissor e um bom partido. Helena adorava sua dama de companhia, chamada carinhosamente de babá. Era babá quem cuidava de suas refeições, de sua agenda, de suas dores de barriga, ajudava nas lições e quem corria atrás dela em festas nos salões de baile do palácio. Helena, aliás, comemorava todos os aniversários nestes ambientes e passava o ano inteiro sonhando com o vestido, as apresentações e ornamentos da comemoração seguinte (foi difícil superar a comemoração de seis anos, quando ela trocou três vezes de vestido). Helena, seguindo o protocolo que lhe fora designado, casou-se com um príncipe, compraram palacete no bairro onde todos moravam, filiaram-se ao clube que todos frequentavam, saiam para jantar fora três vezes por semana nos restaurantes que todos preferiam, frequentava os camarotes que todos badalavam, compravam trajes nas lojas que todos recomendavam, tiveram dois filhos, duas babás, dois carros blindados e viveram felizes para sempre"

sexta-feira, 28 de março de 2014

Carta para mim

Sei que você gostaria de ter os cabelos escorridos da sua mãe. Sei que às vezes chora em silêncio, para lavar a alma. Sei que ama tudo que é feminino, do seu vestido rosa aos perfumes de flores brancas. Que é segura quando parece feita de açúcar. Mas que também é insegura. Sei que sonha alto e é louca por uma taça de vinho tinto. Sei que não toma banho de banheira para que seus dedos não fiquem enrugados. Sei que odeia errar uma receita. Sei que odeia errar. Sei que acredita em banhos de sal grosso e rezas em ladino. Sei que prefere lapiseiras a lápis e que detesta quando explicam seu pavor de cobras como fálico. Sei que fica introspectiva ao entardecer. Sei que é louca por cheiro de inverno, banho quente e esfoliantes a base de açúcar. Sei que gostaria que sua casa cheirasse a lavanda. Sei que não gosta de ovos no café-da-manhã e que não vive sem caldo de carne. Sei que é curiosa. Sei que você também acha que sempre foi séria. Sei que você adora pão de queijo cru, cheiro de alho refogado e sopa de cebola gratinada. Mas sei acima de tudo, que isso ainda não é tudo.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Inconsistências

- O que você viu em mim?
- Como assim?
- Eu lá, deitada no meio da floresta encantada, cercada por um monte de anões. O que te fez parar e me beijar?
- Sua pele, seu ar angelical...
- Sem ser piegas
- Mas é sério. Você deve estar naqueles dias
- Não tem nada a ver com os meus hormônios. Só estava pensando
- No que?
- Se você não tivesse aparecido
- Você nunca teria aberto os olhos
- Claro que teria. Ou você acha que existe algum veneno que passe com beijo? Era provisório
- Pode ser. Então você estaria agora cozinhando para sete anões
- Ou teria abraçado uma causa nobre
- Que?
- Sim, como a defesa dos mineradores
- Sindicalista?
- Talvez. Ou uma ONG para defesa dos animais
- Peraí. Você está dizendo que trocaria sua vida de princesa encantada pelos afazeres de uma casa compacta e as tardes passadas conversando com coelhos?
- Você não entende
- Não, definitivamente. São sete cozinheiros, duas damas de companhia e uma ama de leite para as crianças. Banquetes, festas de gala, jóias do reino e glamour. Tudo isso versus uma ONG?
- Glamour, glamour, glamour. Só isso importa?
- Foi o que te propus em cima do cavalo branco
- Estou numa fase de repensar a vida
- Então faça o seguinte: repense. Se preferir, saia palácio afora hasteando sua bandeira e defendendo sua causa. 
O príncipe Kent saiu batendo as portas do aposento real.
E Snow White abriu a gaveta de sua cômoda, pegou o Rivotril e engoliu com Sidra. Nunca gostou de espumante francês. 

sexta-feira, 21 de março de 2014

Manual de Marte

- A noite ontem foi incrível!
- É?
- Sim. Estava querendo preparar algo especial para o Rodrigo e comecei bem cedo
- Como?
- Assim que ele saiu pela manhã, já coloquei a máscara facial e pepinos nos olhos. Lavei o rosto com mel e os cabelos com óleos especiais
- Que delícia
- Pois é. Então, segui direto para o cabeleireiro. Lá fiz tratamento completo
- Completo?
- Sim. Depilação, manicure, pedicure, luzes, hidratação corte e escova
- Uau!
- Quase fali. Mas estava focada na noite especial
- Claro
- Cheguei em casa, tomei um banho demorado com essência de ylang-ylang. Espalhei pétalas pela casa e abri a champanhe só esperando o Rô chegar
- E ele?
- Achou incrível!
---
- A noite ontem foi incrível!
- É?
- Cheguei em casa do trabalho e a Tati estava me esperando 
- Como? 
- De lingerie preta



Jantar de quinta

- Claro, claro. Deixa eu confirmar e já te ligo de volta. Abraçao.
- Era o Alexandre?
- Sim, ele e a Mônica nos convidaram para jantar hoje na casa deles
- Puxa, que pena. Adoro eles, mas não temos com quem deixar as crianças
- Pediram para os levarmos. Os filhos do primeiro casamento do Alexandre também estarão lá
- Ah não
- Que foi?
- Eles são extremamente bagunceiros
- Mas a casa nem é nossa. Eles que vendam o sofá num brechó depois
- Querido, trabalhei o dia todo, levei, busquei, levei, busquei, levei e busquei novamente as crianças nas atividades. Tudo o que eu queria hoje era pipoca e filme água com açúcar
- Também trabalhei o dia todo, mas acho que pode ser legal sair da rotina
- Se você quiser, eu até topo assistir Senhor dos Anéis
- É sério Rosana, pode ser divertido
- E pode não ser
- Certo, o seu pessimismo venceu. O que eu digo para eles então?
- Sei lá, inventa que eu estou resfriada
- Alô, oi cara. Então, a Rô não está sentindo-se bem, acho que vem uma gripe daquelas por aí. O que? Você sabe preparar um chá milagroso de gengibre e mel? É que não tenho certeza se é gripe, está saindo uma secreção de cor estranha quando ela espirra. Que cor? Azul. Pois é. Ah, você pode convidar o seu homeopata para jantar também e já examina-la? Não sei se é caso para homeopatia, estão aparecendo umas feridas avermelhadas por todo o corpo. Sério? Você aprendeu sobre isso no curso de medicina cósmica e gostaria de vir em casa ajudar? Melhor não, acho que é contagioso. E parece estar piorando. Você faz questão? Então tá, nos encontramos no hospital em meia hora. De repente pedimos uma pizza por lá

segunda-feira, 17 de março de 2014

Rotinas

- Você está rebolando para mim?
- Que?
- Você. Desfilando
- Amor, três filhos, um trabalho, uma casa, dez horas da noite. Definitivamente, devo estar mancando
- O que você fez nos cabelos? Estão diferentes
- Prendi ontem após o banho e ainda não os soltei
- Ah. Mas você está linda
- Não sabia que tinha atração por olheiras, mas obrigada
- Tenho atração por você
- Tá
- Como "tá"? Você é linda
- Talvez um dia tenha sido, mas não após ter parido e amamentado três crianças
- Você ficou mais sensual
- Eufemismo para quadril largo?
- Adoro quadril
- Sabia
- Vem cá
- Vou. Deixa só eu colocar a louça na máquina
- Não, agora
- Amor, deixa eu tomar um banho, fechar o quarto das crianças. Eu volto, prometo
- Nossa, como é difícil
- O que?
- Agradar
- Não é isso. Estou exausta, ainda tenho um monte de tarefas na casa por fazer e estou sem paciência para nhénhénhé. Preciso de objetividade para conseguir dar conta de tudo

Uma hora e meia depois, a esposa volta
- Gostou deste baby doll?
- Achei sóbrio
- Sóbrio? Só isso?
- Sim. Opinião sem nhénhénhé
- Nossa, precisa responder assim?

domingo, 16 de março de 2014

Novecentos e noventa e nove

- Que saco! De novo não
- O que foi?
- Essa sua mania irritante de apertar o tubo da pasta de dente no meio
- Espera, eu sou um marido nota mil, carinhoso, presente, fiel e você vai fazer cena por causa da pasta de dente?
- Nota mil?
- É, nota mil
- Vamos começar: só sai para jantar se for no mesmo restaurante, novecentos e noventa e nove, não suporta minhas tias, novecentos e noventa e oito, sai para jogar poker com os amigos toda quinta-feira, mesmo que eu esteja de cama, novecentos e noventa e sete...
- Falando nisso, quando é que você não está de cama?
- Que?
- É. Adoro você na cama, desde que não esteja reclamando
- Eu tenho enxaqueca, você sempre soube disso
- E eu gosto de sentar na mesa quinze do Printz, você sempre soube disso
- Sim, e comer aquela maldita mostarda para passar três dias com azia
- E te ver três dias bufando ao invés de me preparar uma canja. O que me leva...
- A que? A que? Quero saber
- À sua completa inabilidade na cozinha
- Poupe-me de preparar canja e ficar desfiando frango
- Poupo-te sim, mas arrozinho com bife grelhado seria o mínimo
- Algum dia te enganei? Algum dia disse: "case comigo e sinta-se o rei Momo"?
- Mas dez anos de lasanha congelada não somam pontos a seu favor
- E o que você acha de escutar, há dez anos, em todas as refeições de família: "hoje tem o pavê da mãe? Mas é "pavê" ou "pacomê"?
- Pelo menos minha mãe prepara pavê para mim
- E esfrega na minha cara que soube prender o marido pelo estômago
- Agora o problema é minha mãe?
- Agora?
- Mamãe não, mamãe não
- Você faz isso desde que nos conhecemos
- Faço o que?
- Inverte. Transforma as minhas reclamações em suas
- Amor...
- É verdade, é verdade, não vem dizer que não
- Lembra quando nós conhecemos
- Não muda de assunto
- Aquele mar, aquela praia
- Hum
- Você deslumbrante num biquini branco
- E você galanteador 
- Pois é
- Perfumado
- Sempre
- Oferecendo-se para passar protetor solar nas minhas costas
- Foi meu charme
- Eu deveria ter percebido
- O que?
- Quando você apertou o tubo
- Por que?
- Foi no meio

sexta-feira, 14 de março de 2014

Frágil sexo forte

Moço, quero aquela alcatra bem fresquinha lá. Maria, vou comprar detergente, sabão em pó, alface precisa? Ana querida, vou me atrasar para a consulta com a Dra. Consuelo, mas logo chego, tá? Pedrinho, daqui a pouco a mamãe vem te buscar, olha todos os seus amigos brincando felizes com a professora. Tati, coloquei a roupa do balé na mochila e um casaco caso esfrie, qualquer coisa me liga. Alô, oi chefe, sim, a planilha está quase pronta, logo chegarei ao escritório e lhe encaminho. Amor, também te amo, vamos ao cinema hoje? Alô, Bete, está tudo certo com a reunião da equipe? Não posso me atrasar, pois tenho reunião no colégio das crianças em seguida. Senhor, este caixa eletrônico está funcionando? Obrigada. Lú, você consegue fazer minha mão em vinte minutos?
- Dona?
- Sim?
- Aquele carro é da senhora? 
- Sim
- Está sendo guinchado
- Não, por favor, não, tenha piedade. Não guinche, não multe, foram três minutos. Desculpe o choro, seu guarda, desculpe, uma chance? Por favor. Sim, eu paro de chorar, eu paro. Sabe como é, sexo frágil.

Decisões

- Que vontade de um milk shake. Só estou na dúvida se peço de morango com banana ou chocolate com côco
- Desejos de grávida
- Eu tinha sempre
- Ser mãe vai mudar sua vida
- Para melhor
- Com certeza
- Lembro até hoje do dia em que a Rebeca nasceu
- Parto normal?
- Cesárea. Tenho pavor de dor
- Sem julgamentos, mas discordo completamente
- Só porque você teve um parto humanizado. Humanizado para mim é não sentir dor
- Não distorça conceitos. Humanizado, natural, como um nascimento deve ser
- Já vai começar...
- Melhor mudar de assunto
- E os primeiros dias com o bebê em casa?
- Aquele serzinho que precisa de você...
- Que saudades
- A troca de olhares ao amamentar
- Importantíssimo 
- Pena que eu não produzia leite suficiente
- Não existe essa. Você logo iniciou com leite em pó para o Arthur porque não persistiu
- Ah não? Você não sabe do que está falando
- Claro que sei. Amamentei a Rebeca até os dois anos
- Exagero puro
- Prazo recomendado pela Sociedade Brasileira de Pediatria
- Não vou discutir
- Vamos trocar de pauta
- O difícil foi voltar a trabalhar: creche, babá, peso na consciência
- Não acho certo. O ideal para uma criança é estar próxima de sua mãe na primeira infância
- Eu dei qualidade, não quantidade
- Uhum
- Fora que o Arthur sempre saberá que o trabalho também é muito importante para mim e que não abri mão de nada por causa dele
- Eu preferi acompanhar todos os segundos da infância da Rebeca: a primeira palavra, os primeiros passos, as conquistas
- Mas passa os dias de pantufa
- Cada um suas escolhas
- E falando nelas Ana, você está tão quieta
- Pois é, estamos falando de decisões importantíssimas
- Momentos que vão definir o futuro de uma vida
- O que você vai querer?
- Hummmm. Já sei!
- O que?
- Morango com banana. 

sexta-feira, 7 de março de 2014

Acabou


- Acabou
- Como assim?
- Acabou. Fim. C´est fini
Eu ainda estou cansada, é isso. Ele é só um bebê, parece que nasceu ontem
- Mas já houve tempo para normalizar
- Estou em fase de adaptação: o sono, as mamadas...
- Agora siga em frente
- Não posso. Estou carente
- Bem, é o que posso te dizer
- Vai melhorar, tenho certeza que ficarei mais disposta. Vou tentar. Mas não diga que acabou
- Não tenho mais como prorrogar
- Não faça isso comigo. O que será de mim? Não me aguento em pé de exaustão e agora este baque
- Não exagera
- Exagero? Porque não é você que não dorme direito, que não encontra tempo para ir ao banheiro, que não consegue sair de casa, que anda evitando o espelho
- Cristina, o que você quer que eu diga?
- Me dá mais um prazo?
- Não posso
- Por favor, doutor
- Cristina, a quarentena chegou ao fim. Nos vemos na próxima consulta.

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Aprendizados

Das coisas que aprendi com a maternidade, além do amor incondicional:

- Que as massinhas de modelar são a melhor forma de visualizar o resultado da mistura de cores
- Que lencinho umedecido limpa bumbum de bebê, canetinha do sofá, tinta do corpo, sujeira do chão...
- Que não importa o quanto você se esmere em algo, alguém sempre acha que tem um jeito melhor de fazê-lo
- Que você nunca mais sairá para trabalhar sem pensar "será que ele dormiu um pouco depois do almoço?"
- Que suas crises mudam de tema e você pode perder algumas noites de sono imaginando como dosar o Ninho em pó se ele não vem com a colher medidora do Nan
- Que você inconscientemente classifica as pessoas em: Mulheres-mães-heroínas e Mulheres-mortais
- Que sonho de consumo é dormir sem interrupções
- Que adrenalina não é pular de paraquedas
- Que sapatilha é o novo salto dez
- Que Palavra Cantada é a nova MPB
- Que a mãe da Peppa é a sua nova referência de ser centrado e pleno de auto-controle
- Que você vai morder a língua 
- Que "mamãe, te amo" é o antídoto para qualquer crise existencial
- Que quem tem a pena azulzinha, é a Galinha Pintadinha
- Que 90% dos machucados do mundo passam com beijinho
- Que tudo passa
- Que o tempo voa...
- ... Mesmo!