sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Quem tem medo do lobo mau?

A bruxa tinha uma verruga peluda no nariz. O escuro abrigava muitos fantasmas. E se minha mãe nunca voltasse para me buscar na escola? Ou não me escutasse gritar por socorro? Aquele tio de segundo grau, todo mundo tem. E agora: meu pai saiu de casa? Um estranho poderia me oferecer balas. E o tal do saco preto? A professora de português era muito brava. Será que eu teria amigos no prédio novo? A melhor comida do mundo era feita de minhocas. Será que o lobo me encontraria para fazer mingau? 
Eram alguns medos que quando eu crescesse, iriam embora.Talvez só quando eu casasse - cura de todos os males - mas iriam. Os adultos garantiam e de fato, pessoas que não choram, nos preparam achocolatado antes de dormir e não tem medo da professora de português, tem credibilidade suficiente para a condição de donos da verdade absoluta. 
E o tempo voou. 
Hoje, passados mais de trinta anos e de aliança na mão esquerda, eles realmente partiram. Apenas cederam seu espaço para aflições que, minuto ou outro, povoam meu pensamento.
Sabe, a economia, a inflação e o rumo político do pais. A América Latina anda debulhando o trigo (recolhendo cada bago e tal, para poder se fartar de pão). A Europa também não anda bem. Tem o anti-semitismo, né? Atenção ao parar no farol: já sabe, nada de reagir. Cadê a água? Meu filho quer ser médico, espero que desista. Eu não gosto de macarrão integral, e agora? Sabe como é, o glúten. Fora a crise láctea: quanto não é a lactose, tem o leite adulterado. Quanto custa o goji berry? Que horror a tal da margarina. "Filho, esta placa no aeroporto não é nada de mais, só não desgruda da mamãe em hipótese alguma, peloamordedeus". Tem as balas de estranhos, que continuam não sendo aconselhadas. Antes de deitar, precisa trancar a porta, os cadeados e ligar o alarme, ta? 
Mas está tudo sob controle, eu durmo tranquila com o cansaço e uma taça de vinho. Sou adulta. E adultos tem sempre razão: melhor preparar o achocolatado das crianças e dizer que tudo vai passar. Um dia eles sentirão falta de ter medo de fantasmas no escuro.


terça-feira, 25 de novembro de 2014

@eu

Muito se fala sobre os malefícios da vida conectada. "Conversem entre si", blasfemam os entusiastas do século vinte. "Naquela festa, as pessoas não saíram das mídias sociais", bradam os que insistem que tudo era melhor em seu tempo. "Já sei, vai pro Instagram", apostam os que nunca estiveram a ponto de frequentar um rehab digital. 
E assim eu, como viciada incorrigível e disposta a lutar para por meus ideais, resolvi elaborar uma lista com uma série de qualidades insubstituíveis da vida como persona @. Caso sintam necessidade, estejam à vontade para complementá-la:
- A vida com filtro é de uma beleza incontestável.
- As conversas sobre clima podem ser abortadas antes mesmo do tradicional "né?".
- TPM agora é sinônimo de fotos calóricas ou frases bem-humoradas.
- "Intervalo comercial" passou a ter o nome agradável de #lookdodia.
- Nós de fato passamos escolher nossos amigos.
- O Big Brother perdeu a concorrência e finalmente saiu do ar.
- Ao invés de usarem drogas ilícitas, as pessoas podem escolher enxergar o mundo através de mídias alternativas.
- As onomatopéias ganharam uma nova perspectiva com kkkkkkkk.
- As grossas 'Páginas amarelas' viraram pesadelo do passado.
- Com o 'delete', ninguém nunca mais precisará lavar a boca com sabão.
- Passamos a ter mundo de inspirações sem precisar sair de casa.
- Trabalhe, divirta-se, venda ou anuncie no conforto de seu sofá.
Mas é claro que existe a possibilidade de você não ter sentido-se tocado por algum dos argumentos acima. Sem problemas. Converse, reencontre amigos, cozinhe em grupo, passeie por uma praça arborizada. Mas lembre-se: existe uma revolução virtual acontecendo debaixo de seu nariz e serão apenas seus os benefícios de não fazer parte dela.

@nuritmasijahgil






quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Ô tia, tipo assim

O trânsito parou e diante da janela do passageiro, ele apareceu. Pele morena, sorriso lindo, cabelos cacheados e pose displicente, recostado ao muro verde. Quase abri a janela para puxar conversa, já que ele notou que eu o observava. Contive meu ímpeto, por sorte, mas teria dito:
- Menino, endireita a coluna e amanhã melhor sair com uma blusa mais fresca, por causa do calor, ta?
Choque! O muro verde era de um curso pré-vestibular e até pouco tempo, eu saia do colégio para almoçar na avenida Paulista e suspirar pelos 'meninos do cursinho' que caminhavam em direção ao Objetivo. De repente, passei a ter idade para ser mãe de todos aqueles representantes da raça masculina rebeldes e integrantes de bandas de garagem. 
Quando foi que a vida passou em fast foward sem meu consentimento?
Meu mundo andava cheia de sinais e talvez eu já devesse tê-los notado. O comprimento das minhas saias, os bocejos antes da meia-noite, as visitas constantes à osteopata ou a construção de frases sem a palavra 'tipo'. Mas este fato esfregou uma realidade que eu resistia a aceitar: para alguém de dezessete anos, eu sou tia. Tia!
Hoje, os representantes interessantes da mesma classe tem cabelos brancos (quando os tem), barriga saliente, filhos e quando querem ser rebeldes, exageram na cerveja. Fora que conversam, não gabam-se por cheirar acetona e já sabem que 'sem celulite' é propaganda enganosa de creme importado. De fato, os anos trazem mudanças significativas.
O trânsito andou. O menino deve ter continuado seu papo-cabeça-rebelde-banda-de-garagem e eu acelerei meu carro de tia, com dois assentos infantis no banco de trás e bolachinhas no porta-luvas para a hora da fome.
Pensei seriamente em terminar este texto discorrendo sobre o aprendizado e a experiência que o passar dos anos trouxe. As rugas, os cabelos brancos, alguma mensagem de auto-ajuda para a crise de meia idade. Pensei muito. Mas o final não poderia ser outro:
Céus! Eu tenho idade para ser mães dos meninos de cursinho! 


quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Foco

Já? Preciso mudar o toque deste despertador, definitivamente os dias devem ser melhores quando iniciados com música ao invés de té-té-té. Mais cinco minutos. Só mais cinco. Não acredito! Sete e meia! Melhor eu levantar. Bom dia cabelos, que mau-humor, hein? Lembrar de comprar mais pasta de dentes, esqueci nas duas últimas visitas ao supermercado. Visitas, rá... Quem é que "visita" um supermercado? Economizar é comprar bem... Céus, o telefone! Falta de bom senso ligar para alguém antes das oito da manhã. "Alô? Oi, oi... Imagina, não, eu acordo junto com o galo, ahã, ahã, o relatório está quase pronto, envio ainda hoje, para você também, tchau". Relatório. Em qual arquivo guardei? On a dark desert highway, cool wind in my hair... Essa sombra azul é linda mesmo... Warm smell of colitas. Ih, hoje eu tinha planejado começar a academia! Bom, agora já passei sombra, fica para amanhã. Café da manhã, preciso adquirir este hábito. Iogurte, perfeito. Gente, quem tem coragem de fazer comercial de Activia? O cachê deveria ser maior que o de posar para a Playboy. Pronto, chega de enrolar. On. Poderia haver um botão para ligar o cérebro também. Meu corpo pede cafeína. Café solúvel, baita invenção. On, agora vai. Ana está online, deixa eu aproveitar para agradecer o ingresso. Dez e meia! Quase horário de almoço e ainda não comecei a trabalhar. Depois eu acabo às dez da noite, preciso mudar esta rotina. Quando trabalhava na empresa, batia cartão e pronto, nada de enrolar. Em compensação... Onde eu coloquei o telefone do técnico da lava-louças? Aqui. Bom, depois eu ligo. Cadê o relatório? Relatorio, relatório... Achei. Vamos lá. Hora de agilizar. Só mais um café e deu. Acabou o adoçante! Deixa eu preparar uma lista: adoçante, espinafre, pasta de dentes... Devo ter um pouco de açúcar ainda. Um colher, pronto. Nada de mais. Amanhã, de qualquer forma, eu começo a academia. Meio-dia. Preciso melhor esta rotina. Preciso. É tudo uma questão de mudar o toque do despertador.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Intimidade

Apesar da criação tradicional, Carola não era exatamente púdica. Descobrira até bem cedo as tentações da vida e sucumbira a quase todas elas.
O primeiro beijo de língua aconteceu enquanto suas amigas ainda tentavam fazer tranças em bonecas. O baseado, o sexo e - por que não - o brigadeiro de panela em madrugada de fossa, todos antes do baile de debutantes do colégio, quando estreou a tatuagem de onça desenhada do pescoço ao cóccix sob o vestido de tafetá decotado.
Rodou o mundo, namorou, pirou, meditou, experimentou, separou. Repetidas vezes. Sabia que era moderna para os padrões da sociedade e, inclusive, nutria certo orgulho quando referiam-se a ela como uma libertina.
Mas aconteceu de um dia, voltando para casa no final da tarde, parar para observar a loja de colchões que recentemente havia inaugurado em seu bairro. Pé direito duplo, vitrine imensa de vidro, lustre de cristais vermelhos. Coisa fina. Lá dentro, um homem - nem bonito nem feio - parecia explicar para a vendedora o modelo que procurava. Enquanto Carola admirava a parede de tom preto, imaginando se a cor ficaria bem em sua recém reformada sala, a dupla seguiu em direção ao colchão da vitrine. O homem então deitou, virou de um lado, experimentou de outro, ficou de bruços, mexeu o corpo, aconchegou-se em conchinha.
Carola ruborizou. Ela jamais exporia tamanha intimidade. Uma coisa é sair pela rua exibindo sacola de sex shop, meio gosto, meio marketing. Outra, é mostrar-se de verdade para os transeuntes. Dormir é coisa íntima, sinceridade para poucos, sem fingimento, performance ou manual indiano. É você ali, pá, escancarado e sem qualquer filtro.
Tamanho fora seu incômodo, que ela deixou a passos largos a parede preta para trás. Era amor, ela tinha certeza. Trinta segundos de ternura que viraram paixão, que evoluíram para amor. Nunca sentira isso. 
No dia seguinte, voltou para a vitrine. Nada. Procurou aquele homem por uma semana. Nem sinal.
Carola ja experimentou de tudo um pouco, mas agora sua busca mudou. Ela quer beijos de bom dia com gosto de café, silêncios que não sejam constrangedores, escovas de dente encostando no banheiro, mensagens de amor às duas da tarde e roupa íntima pendurada no box. Alguém que a veja dormindo de meias no inverno, com pijama de algodão, cheiro de sabonete, placa de ATM nos dentes e ressonando de cansaço. De todas as tentações da vida, ainda falta sucumbir a uma delas: dormir de conchinha.