segunda-feira, 28 de abril de 2014

Urgência matrimonial

Na aula de pompoarismo para iniciantes, a instrutora estendia-se na explicação teórica sobre as bolinhas tailandesas. Não contendo a curiosidade sobre a vida do outro, duas alunas iniciaram uma conversa entre sussurros.
- Interessante, né?
- Muito. Vamos ver se funciona mesmo
- Pois é. Casada?
- Sim. Há quarenta anos. Preciso apimentar meu dia-a-dia, se é que você me entende
- Entendo bem
- Mas você me parece tão nova. Recém casada, talvez...
- Tenho filhos pequenos
- Ih! 
- E fui pra quinto plano, após as crianças, a casa, o marido e o casamento
- Já passei por isso. O problema é a quarentena virando noventena?
- Não, desta fase já passei
- O cheiro de leite e as unhas descascadas?
- Já tenho tempo de fazer as unhas a cada dois meses...
- Parabéns! Quem sabe então os bocejos em momentos inapropriados?
- Isso passa um dia?
- Ahã
- Bom saber. Mas não é o motivo
- A falta de tempo para conversar com o marido? As roupas largas? A exaustão? O humor?
- Tudo parte da minha vida, mas não...
- Estou curiosa. Que motivo pode ser mais urgente do que estes?
- Foi o seguinte: numa noite da semana passada, meu marido chegou em casa e, após deitarmos as crianças, servi o jantar
- Tá
- E começamos a conversar. Ele me contou sobre o dia no trabalho, relacionando os acontecimentos ao cenário político-econômico do país
- Certo
- Depois ele me perguntou "E seu dia? Quais as novidades?"
- E...?
- "Aconteceu uma coisa estranha. Foi na fralda da Eduarda..."
- Você colocou as palavras 'novidade' e 'fralda' na mesma frase?
- Pois é. Nem sei se é tão grave assim ou se estou exagerando, porque...
- Querida...
- Que?
- Shhhh. Presta bastante atenção na aula

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Profissão

- A senhora pode preencher esta ficha, por favor
- Claro
- Tem caneta no outro balcão
Crianças, fiquem aqui perto da mamãe
- Nome: Ana Lu... Davi, volta aqui já! Ana Luiza. Nascimento. Não, não pode mexer ali. Vinte e quatro. Porque não pode e ponto final. De julho. Carolina, não puxa o cabelo do seu irmão. De mil novecentos. Olha que vou contar até três, hein? E oitenta. Profissão. Nutricionista. Não, não pode comer bala. Enfermeira. Porque faz mal para os dentes e dá dor de barriga. Com horas acumuladas em plantões noturnos. Igual ontem à noite, lembra? Pois é. Coacher. Isso, assim que eu gosto, amigos, brincando juntos. Compradora com atuação nos segmentos de alimentação, farmacêutico, confecção e insumos em geral. Está bem, na saída a gente passa no supermercado. Se tiver o chinelo lá eu já compro. Batata frita não pode. Personal organizer. Gente, sem bagunça, por favor. Não quero caos. Certo, deixa que a mamãe junta, continuem brincando. Psicanalista especializada em mediação de conflitos. Sem brigar, chega, chega, chega! Parem já! Executiva de logística com experiência em direção sob situações adversas. Vamos para casa agora se não pararem. Então parem de chorar. Sim, depois do colégio vamos para a dra. Tania e em seguida podemos passar na casa da vovó. Mas parem de brigar.
- Pronto, aqui está a ficha
- Moça, você faz tudo isso aqui?
- Ahã
- Como é possível?
- Sou mãe em período integral
- Ah, deixa eu complementar: "não trabalha"

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Satisfação

- Suco de cajá!
- Que?
- Estou com desejo
- Legal. Se morássemos no nordeste, eu atenderia
- Mas nossa filha pode nascer com cara de fruta
- Está na moda 
- Maurício, estou com nove meses de gravidez
- E...?
- Imagina futuramente quando perguntarem que desejos tive na gravidez. O que você quer quer eu responda?
- Ah, então é isso!
- Claro que é. Vou responder que não tive desejo nenhum?
- Sim. Fugiu do clichê
- Não é clichê. É o ciclo natural das coisas: namore, case, fique grávida, tenha desejos...
- Mara, são onze horas da noite em Porto Alegre. Você quer quer eu saia à procura de um cajá?
- Sim, o cenário é perfeito
- E supondo que eu encontre. Eu voltaria, faria um suco...
- ... eu tiraria uma foto, postaria na internet...
- E seria feliz para sempre?
- Não digo que para sempre. Mas por agora, ficaria bem satisfeita 
- Tantas outras coisas podem te fazer satisfeita agora
- Ah é? Como o que?
- ...
- Peraí. Você quer que eu esqueça meus vinte quilos de barriga, minha azia, meu mau-humor e minha falta de ar para uma satisfação instantânea?
- É
- Esquece. Boa noite
- Mas e a felicidade? 
- Serve o chocolate que está na sala...


Padecendo no paraíso

- Um, dois...
- Ai, está bem, eu guardo os brinquedos agora
- E da próxima vez quero que pense melhor antes de me responder, hein?
- Tá bom, mãe
- Manhê!
- Que?
- Acabei
- Estou indo
- Mãe
- Hã?
- Cade aquela pecinha vermelha?
- Não sei, procura bem que você encontra
- Achei
- Pronto, agora podem desenhar
- Ahhhhh
- Sem briga
- Ele que começou
- Não quero saber. E daqui a pouco vamos para o banho
- Eu odeio banho!
- Sem discussão. Precisa e ponto final
- Humpf!
- Olha...
- Mãe, estou com fome
- Estou preparando o jantar
- Eu quero macarrão
- E eu, feijão com lentilha
- Gente, isso não é um restaurante
- Ai, ai, aaaaai... para de puxar meu cabelo
- Chega!
- Não fica brava
- Eu não estou
- Está sim!
- Mas também, vocês não me dão um segundo de paz!
---
- Eles já dormiram?
- Sim, vem ver
- Lindos
- Parecem anjinhos. Já estou com saudades

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Mundo moderno

Vida social virou mídia social
Pessoa virou perfil
Polaroid virou Instagram
Relacionamento sério virou status
Check in virou assunto
Pensamento virou hashtag
Patricinha virou blogueira de moda
Base virou BB cream
Festinha em casa virou petit comité
Pão de ló virou naked cake
Cozinha virou espaço gourmet
... e o brigadeiro, o quindim e a cerveja também 
Pé na água virou deck molhado
Saint Tropez virou cós baixo
E a outra Saint Tropez virou Trancoso
Vida de mãe virou maternidade consciente
Parir em casa virou cool
Tarde livre virou balé, natação, inglês e capoeira
Dor de barriga virou intolerância à lactose
Gripe virou H1N1
Brega virou sertanejo universitário
Super Mario virou Candy Crush
Auto-ajuda virou literatura
Paulo Coelho virou referência (socorro)
Introspecção virou depressão
... que virou Rivotril
Punk virou adjetivo
Bandido virou vítima
E vítima virou culpado
Oposição virou situação 
'O gigante acordou' virou 'Contra Copa'
Petrobras virou Eireli
PT virou piada. E ameaça 
Ideologia vira, vira, vira, virou


quinta-feira, 17 de abril de 2014

Descomunicando

- Não estou brava
- Claro que está 
- Está tudo bem
- Por que você está olhando para mim desse jeito?
- De que jeito? Estou normal
- Olha...
- Depois a gente conversa
- Por que depois?
- Não na frente das crianças
E tomam café da manhã, as crianças vão para a escola e os adultos, ao trabalho. Reuniões, e-mails, recreio, coffe break. Dia que passa, cheiro de pão da boulangerie ao lado e na rua, alguém grita. De amor. Ou de medo. O sol se põe, os pássaros procuram abrigo, o trânsito em horário de rush. As crianças voltam da escola e os adultos, do trabalho. Tomam banho, o tempo esfria, agasalham-se e jantam sopa. A filha mais velha vai deitar, o caçula tem lição por fazer. Silêncio.
- E então, o que foi?
- Ai, esquece vai
- Então, tá. Se você quiser, me fala.
Fim. Ou bem próximo dele.

Oncinha

- Querida! Quanto tempo!
- Hã? Ah, oi...
- Lembra de mim?
- Ahn, bem...
- Você está linda. O que andou fazendo, hein?
- Nada
- Ah, vá
- Deixa eu te apresentar meu marido, Lúcio
- Oi, prazer
- Prazer, Lúcio. O que você fez para fisgá-la, hã?
- Oi?
- Essa aí não dava mole pra ninguém. Era festa atrás de festa
- Eu?
- E sempre linda. Parava o salão
- Nem tanto
- Teve uma vez... Posso contar?
- Não sei do que...
- Posso vai. Teve uma vez em que ela chegou com um vestido de oncinha... Ah não, não vou delatar minha amiga
- Pois bem...
- Que saudades! Vamos marcar um café um dia destes?
- Sim, sim
- Só não me apareça de oncinha, hein?
- Pode deixar
- Tchau, querida. Tchau Lúcio 
- Tchau
---
- Quem é, Laura?
- Eu não faço a menor idéia
- E que história é essa de oncinha?
- E eu lá uso oncinha, Lucio? Quinze anos de casados, três filhos e você não me conhece?
- Tem razão. Desculpe.
Naquela noite, Laura não conseguia pegar no sono. Precisava lembrar onde estava guardado o vestido. Pelo bem de seu casamento.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Brevidades

- Como foi seu dia no trabalho?
- Bem
- Passa a salada?
- Passo. E o seu foi bem?
- Ahã
- Tá
- Você viu que o condomínio vai aumentar?
- Ah é? Quanto?
- Não sei
- Já foi ver o barulho do seu carro?
- Uhum
- Passa a carne?
- Aqui
- De resto tudo bem?
- Ahã. Você?
- Uhum
- Tá
- A Maria vem amanhã?
- Às dez
- Pede pra ela passar a camisa azul?
- Tá. Amanhã você chega tarde?
- Talvez
- Ok
- Que horas chega o Fabinho?
- Daqui a pouco. Vem de carona direto do cursinho
---
- Oi filho, como estava a aula?
- Legal
- Só isso?
- Ahã
E enquanto Fabinho lavava as mãos, os pais cochichavam "adolescentes...".

terça-feira, 15 de abril de 2014

Momentos parisienses

- É o seguinte: estou indo para Paris
- Não entendi a piada
- Comprei uma passagem. Embarco amanhã
- Pirou?
- Não, tanto que comprei o trecho de volta. Fico por lá uma semana
- Tamara, você está falando sério?
- Seríssimo 
- Como assim?
- Henrique, não me entenda mal. Eu amo nossa família e adoro a minha vida, mas preciso de um tempo
- Tempo?
- Sim. Preciso acordar sozinha, andar sozinha, comer sozinha, tomar banho sozinha...
- E você precisa ir para Paris fazer isso?
- Sim. E não ativei o pacote internacional do celular. Você não entende, Henrique? Preciso ter tempo para sentir a brisa no rosto, olhar para dentro de mim e matar a saudade
- Vai pra Gramado! Pega o carro e dirige sozinha até Torres. E volta no dia seguinte
- Não estou brincando
- E as crianças? E as crianças?
- Deixei tudo programado. Minha mãe cuidará da rotina delas durante o dia e você ficará com a logística em casa
- Tamara, faço qualquer coisa. Fique!
- É uma semana apenas. Para reencontrar minha alma, a Tamara que esteve apagada nos últimos anos, enquanto cuidava de tudo e de todos
- Tamara!
- Eu volto...
- Que?
- Hã?
- Volta de onde?
- Nada, não. Estava pensando alto. Vou preparar o jantar e já volto.

Politicamente correto

A onda começou sutil. Nada de chupeta para não interferir na amamentação, chega de anestesia no parto, a fralda descartável destrói o planeta e por aí vai.
Garanto que qualquer mulher com um mínimo de consconsciência até concorda com estes argumentos, mas a polícia do politicamente correto anda a solta e cheia de ímpetos de censura
- O que é aquilo que sua filha está comendo?
- Marshmallow
- Que horror!
Assim, num futuro não muito distante, caso esqueçamos definitivamente que tanto o oito quanto o oitenta podem ser prejudiciais, corremos o risco de presenciar uma cena assim:
- Arthur, a princípio seu perfil encaixa-se perfeitamente ao do profissional que estamos buscando para esta vaga
- Que excelente notícia. Estou preparado para este desafio
- Mas...
- O que?
- Tem algo que não está adequado
- Sim, meu MBA foi em vendas, mas sei que posso aproveitar este conhecimento e...
- Não...
- E futuramente posso fazer um mestrado em marketing estratégico
- Claro, claro
- Fora que não fumo, não bebo, tenho uma vida bastante estável
- Arthur, tem algo que talvez você não saiba
- Hã?
- Buscamos em seus registros e é um detalhe relevante, que pode refletir em nosso dia-a-dia
- Que?
- Em sua capacidade cognitiva, no desenvolvimento a longo prazo
- Mas o que?
- Sente-se
- Pronto
- Você nasceu de cesariana!
Fecham-se as cortinas. E torçamos para que a platéia gargalhe ao invés de chorar.


Passeio

- Filha, por que você está chorando? Olha que dia lindo, o calorzinho do sol. A mamãe está aqui, não chora
- Querida, não gosto de me intrometer, mas... é fome!
- Não, ela acabou de mamar
- Olha que eu nunca me engano
- Obrigada pela sugestão, daqui a pouco ela dorme, é apenas sono.
- Querida, querida.... Ouça a voz da experiência
- Obrigada senhora
- Certo. Boa sorte
- Pronto filhinha, shhhh, vamos passear de carrinho e dormir um pouco
- Ih, conheço esse choro. Quando meu filho era pequeno tinha muita cólica, chorava sempre
- É sono
- Colica, acredite
- Está bem. Agradeço a sugestão
- Sem problemas
- Shhhh, meu amor. Shhhh
- Olha esse bebê que chora tanto. É o sol, né queridinha? Fala pra sua mãe
- É sono!
- Protege ela desse sol, faz mal
- Vou proteger. Grata. Mas é sono
---
- Oi querida, já voltou do passeio? Esqueceu algo?
- Sim, os tampões de ouvido


segunda-feira, 14 de abril de 2014

Eu, tu, eles

- Chegamos
- Finalmente, um cantinho só nosso
- Para dormirmos e acordarmos sempre juntos
- E fazermos tudo da forma como bem entendermos
- Nosso lar
- Conheço este olhar
- Vem cá..
---
- Vem cá...
- Deixa eu só ver se a Juju está dormindo
- Liga a babá eletrônica
- Então vamos para o quarto
- Estou indo
- Shhhh. Senão ela acorda
---
- Vem cá...
- Espera um pouco, deixa eu ver se as crianças pegaram no sono
- Estão em silêncio
- O Thomas ainda está acordado. E a Juju está lendo
- Prepara um leite quente para eles
- Sim. Vou também contar uma história e já desço
- Pronto? Você demorou
- Acho que agora estão num sono profundo
- Vem cá
- Lá no quarto. Tranca a porta
- Pronto
- Manhêêê!

domingo, 13 de abril de 2014

Para sempre

- Para sempre é vazio
- Como?
- Não garante nada. Apenas frustra
- De onde surgiu esta crise?
- Quantos amigos para sempre continuam na sua vida?
- Alguns
- Já confirma a tese. E quantos casais trocaram "até que a morte nos separe" por "até que a rotina encha nosso saco"?
- A Renata e o Lúcio, a Gisele e o Marcos...
- Pois é
- Mas de certa forma, a rotina pode ser uma morte
- Então deveriam dizer "para sempre, de certa forma". E quantos publicitários viraram vendedores, quantos fisioterapeutas são hoje chefs de cozinha ou quantos administradores preferiram ser escritores?
- Conheço um ou outro
- Quantos cantam o hino de um país com a mão no coração, enquanto sonham com o aeroporto?
- Mas o que tem o hino...
- É uma forma de reverência
- Mas Cris...
- Frusta, frustra!
- Então você nunca mais dirá "para sempre"?

- É isso. Chega de para sempre. De certa forma.

sábado, 12 de abril de 2014

O universo da maternidade

Existe um universo complexo chamado maternidade. Quem faz parte dele, além de não dormir e achar normal carregar oito brinquedos diariamente na bolsa, passa a integrar um grupo seleto de pessoas que acostumam-se a repetir quase diariamente "ah, agora eu entendo" ou simplesmente "ai", após morder a língua.
Mas como a humanidade adora divisões - capitalista e socialistas, xiitas e sunitas, gremista e colorados, pão francês e cacetinho - a maternidade é fragmentada em dois pólos, altamente divergentes e bélicos: as mães que trabalham fora e as que ficam integralmente com os filhos.
De um lado, elas não querem (ou não podem) abrir mão do salário, do status ou da independência e criticam aquelas dondocas que ignoram um marco histórico, que foi a queima de soutiens. Madrugam e impecáveis, organizam uma logística de guerra para que sua ausência seja pouco sentida. À noite, ainda sobra tempo de dar a sobremesa e contar uma história. Seu trunfo, é dar conta de tudo em meras vinte e quatro horas. Verdadeiras super mulheres.
De outro, elas não querem (ou não podem), abrir mão de cuidar e acompanhar cada detalhe da vida das crias e não conformam-se com aquelas egoístas que abriram mão de um momento único da vida para satisfazerem o ego. Madrugam e descabeladas, iniciam uma rotina insana para que sua presença seja sempre indispensável. Seu trunfo, é poder contar ao pediatra quantas vezes sua filha pisca antes de espirrar. Verdadeiras super mulheres. 
A guerra é pesada e inclui olhares enviesados no colégio, comentários ácidos em festas infantis e grupos privados em mídias sociais. O que pouca gente sabe é que no fundo, assim como na política, na religião e no futebol, a maternidade engloba simplesmente uma patota com paixões em comum. Neste caso, a de privilegiadas que conheceram o maior amor do mundo. E - ainda no fundo - uma até admira e sente uma pontada de inveja da outra. Mas isso ninguém admite, para não pegar mal.
Todas choram as dores dos filhos, sabem o horário da última dose do antibiótico, contam histórias, tem beijos mágicos, agasalham em noites frescas, vibram, incentivam, educam, amam e sabem que só quem já sentiu o peso das escolhas feitas, pode fazer parte de um destes pólos bélicos. Quem não é mãe, que escolha outra batalha para julgar.




(Re)formulando sonhos

Bati o carro. Me distraí e bati. Não, eu não estava falando ao celular, apenas pensando na vida. Quer que eu diga mais? Deixa eu ver. Quando eu era mais nova, me imaginava aos trinta anos sempre vestida de tailleur. Eu chegava em casa, com uma pasta preta e o tailleur, para então as crianças e o cachorro virem correndo me abraçar. Portanto, acreditava que seguiria uma carreira executiva. Terminei a faculdade, ingressei numa empresa. Depois em outra e mais outra. Fiz MBA. E cheguei à conclusão que achava chatésima a vida empresarial. Não o trabalho em si, mas a vida regrada. Ou a falta dela.
Então fui atuar com vendas. Amar nunca amei, mas gostava bastante e a rotina ficou mais interessante sendo dona do meu horário. Fora que eu via o dia passar e o intercalava com assuntos pessoais. Cada um sabe das suas prioridades e esse equilíbrio, para mim, é fundamental.
Passou um tempo e as crianças nasceram. Fiquei um período sem trabalhar. Claro que "sem trabalhar" é eufemismo para nunca parar nas vinte e quatro horas do dia, correr feito louca, não receber ordenado algum e ouvir as pessoas perguntarem "você não trabalha?". Foi ótimo sim, fui feliz demais, mas tinha hora para acabar.
E logo em seguida, abri minha empresa, feliz, saltitante, sem lenço e sem documento. Só que com documento, CNPJ, funcionários e impostos. Muitos. Corri, vesti a camisa, amei. Me encontrei. Adorei assinalar "empresária" em fichas cadastrais. Mas por circunstâncias mil, durou pouco. Aprendi demais, mesmo o que jamais repetir. E, além do aprendizado, ficou uma sensação de vazio, de dever não cumprido. E bati o carro. Simples assim.
Agora, projetos não faltam. Às vezes sinto que preciso avisar ao cerebelo "obrigada pelas idéias, mas me deixe descansar aos domingos". E para falar a verdade, estou bem entusiasmada. Acontece que não posso deixar de pensar o que teria acontecido se eu não tivesse fugido da rota estabelecida. Do tailleur, do horário comercial, do vale-refeição.
O que? Se eu ainda tenho o tailleur? Sim, até vesti outro dia. Mas estava apertado. E tinha um furo de traça.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Vinte e quatro horas?

- Acho que está bem. Vou descongelar o frango e o...
- Manhêêê!
- Já vou!
- Pode deixar, envio o e-mail em seguida e...
- Manhêêê!
- Já vou!
- Eu somei os valores, deu...
- Manhêêê!
- Já vou!
- Alô. Claro, podemos falar agora...
- Manhêêê!
- Já vou!
- Entendi. Complicado, mas farei. Primeiro baixarei o aplicativo...
- Manhêêê!
- Já vou!
---
- Boa noite, amor
- Boa noite. Como foi o trabalho?
- Foi bem. E seu dia rendeu?
- Sim. Agora só preciso descongelar o frango para o jantar, enviar e-mail para o banco, orçamento para um cliente, ligar para a Rebeca e baixar um aplicativo importante
- Mas não deu tempo durante o dia?

Papai e mamãe

- Amor, o que é isso?
- Uma lagartixa enorme. Parece um dinossauro, ahrrrr!
- Sério? Mas tem asas. Que mistério
- Chama a pop. O que você está cozinhando?
- Marmelada de banana e banada de goiaba. Me ajuda?
- Claro! Hora da missão!
- Então tá, mexe vagarosamente na panela
- Tum, tum, tum, mexe, mexe, mexe
- Vamos lá. Hoje é dia de aprender! Mais quatro minutos
- Um, dois, três, quatro... 
- Agora pega um batedor. Deve estar lá nas gavetas malucas
- Hummm, esta aventura está me dando uma fome...
- Aquele bicho não sai de lá. Como é feio
- Eles podem ser feios, mas são importantes. Em nossos jardins nos ajudam bastante
- Querido, amo você. Você me ama?
- Sim, somos uma família feliz
- Os doces estão prontos. Vamos comer em frente à televisão?
- Vamos sim. O que você quer assistir?
- Como assim?
- Escolhe um canal
- Existe mais de um?

terça-feira, 8 de abril de 2014

Dois sábados

Era sábado e Ana Luiza acordara às onze. Beijou seu marido, levantou, lavou o rosto e num rompante de preguiça, retornou à cama para assistir aos pássaros, que cantavam na janela. Silêncio.
Tomou um longo café da manhã, com ovos, torradas e suco de laranja. No ar, um aroma de outono apurava suas energias.
Saíram para almoçar e como se tivessem acabado de se conhecer, ela e Miguel conversaram por horas, numa tarde regada a clericot, sem pressa para compromisso algum. Decidiram retornar à casa para cochilar durante a tarde, deitados na rede, os pés entrelaçados, trocando juras de amor.
O telefone não tocou. Nada por fazer, apenas observar, namorar, ler e meditar.
Durante a noite, poderiam ir ao cinema, cozinhar ao som de blues ou dançar até a manhã chegar
- Amor, amor... acorda
- Hã?!
- A babá eletrônica. O Theo está chorando.
Era sábado e Ana Luiza acordara às seis.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Eram só quinze

Barulho de chaves
- Obrigada por pagar minha fiança, amor
- Catarina, você foi presa por agressão a duas senhoras. Como? Como?
- Eu vou te explicar
- Espero que não culpe os hormônios, senão vou repensar seriamente nosso relacionamento
- Não, não. Foi assim: hoje de manhã eu estava animadíssima ao sair com a Larinha. Aliás, ela está com sua mãe?
- Sim, continue
- Vesti nela a jardineira floral que a tia Lela deu. Troquei as fraldas e a amamentei. Eu tinha três horas inteiras, daria para fazer uma porção de coisas
- Certo
- Então eu preparei a sacola com todos os apetrechos, coloquei a Lara na cadeirinha de segurança, o carrinho no porta-malas e sai. Ainda tinha duas horas e meia
- Tá...
- Cheguei ao café e pedi um descafeinado. Nisso, as caretas da pequena começaram e percebi que precisava trocar sua fralda. Quem me dera. Precisei trocar a fralda, a roupa e, caso tivesse shampoo e sabonete, teria dado um banho por lá mesmo. Bem, por sorte, ainda restou uma folha do lenço umedecido
- Por que?
- Porque em seguida ela regurgitou na minha blusa. Usei a última folhinha do lenço e fiquei com um aroma de lavanda azeda. Mas tudo bem
- Normal
- Normal? Fábio, normal é comer arroz com feijão, é pedir um café e tomar o dito cujo, é acordar e pentear os cabelos antes do meio dia. "Tudo bem" é uma coisa, "normal" é outra
- Olha, ainda estamos na delegacia. Tome um copo d'água
- Certo. Bem. Ainda tinha uma hora e meia. O café estava frio
- E a Lara?
- Com sono. Começou com um choro leve, mas em dois minutos, virou um escândalo. Tentei acalmá-la de todas as formas até que desisti e amamentei novamente, ignorando a mesa com três homens ao lado
- Apareceu algo?
- Não abusa do meu humor...
- Tudo bem, tudo bem
- Em seguida, levantei, paguei a conta e comecei a caminhar, para tentar fazê-la relaxar e dormir
- Certo
- Dei três voltas no quarteirão, mas ela berrava cada vez mais alto. Finalmente, na quinta volta, ela dormiu. Eu ainda tinha quarenta e cinco minutos. Voltei ao café e ao parar o carrinho, ela acordou novamente
- Puxa. Sei bem
- Sabe? Sabe mesmo Fábio?
- Seu guarda...
- Tá, tá, vou relaxar. Então levantei e desta vez, caminhei cerca de quinze quilômetros. Ela dormiu profundamente
- Que bom
- Voltei ao café, sentei, pedi sussurrando um descafeinado e ajustei para mudo o toque do celular. Fiquei admirando a Lara, parecia um anjinho, doce, linda. O pedido chegou. Eu ainda tinha quinze minutos
- Sim
- E foi então que aconteceu
- O que?
- Chegaram duas senhoras
- Tá...
- Falando alto
- E?
- Elas pararam ao lado da Larinha. E fizeram "cuti-cuti-cuti"

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Frivolidades

A turma reunia-se toda primeira terça-feira do mês. Demoraram meses até chegar à formação atual, de dez pessoas, todos cultos e com interesses em comum. A não ser a Lucinha, que fora trazida certa vez por Regis e acabara ficando. Ninguém nunca soube exatamente o porquê.
Sentavam-se no bar e costumavam discutir política, sempre com meandros de sociologia, filosofia, antropologia e meteorologia. Invariavelmente, era só chegarem ao ápice da conversa e Lucinha dava seu fora.
- Ditadura. Ponto final!
- Você é um burguês, Edgar
- Sou professor universitário. Como posso ser burguês? Está maluco?
- Vocês já ouviram que todo filho de psiquiatra é meio maluco? Disse Lucinha
- Bem, meu pai é psiquiatra...
- Ah, desculpe. Não sabia
Lucinha nunca palpitava sobre os assuntos ditos intelectuais. Apenas concordava com a cabeça. Até sentir a deixa
- Não pode ser, João. Você desdenha minha inteligência com este tipo de opinião 
- Ih, Beatriz, inteligência e hormônios 
- Sabia! Você está grávida?
- Não, Lucinha, não...
Já tinham feito diversas tentativas de excluí-la do grupo, mas alguém sempre tinha pena "Ah, chama vai...".
Um dia Lucinha chegou diferente. Pediu um Martini e discordou, opinou, sugeriu coerentemente. Ninguém acreditava.
Começaram a trocar olhares estupefatos. Fabiola até engasgou com a azeitona quando Lucinha exclamou "farsantes populistas!".
Nenhum fora. Nenhum comentário inapropriado. Nada. Apenas coerência. 
No encontro seguinte, tentaram até incitar a antiga Lucinha
- Lú, aquele cara está com um jeito de bêbado, né?
- Você acha?
- Postura de quem trai...
- Frivolidades
Frivolidades. Era a palavra que comentavam por telefone, tentando entender o que acontecera com Lucinha. Até pouco tempo, achavam que ela inclusive desconhecia o significado do termo e agora até conseguia inseri-lo apropriadamente no contexto.
No encontro seguinte, Edgar teve uma reunião inadiável e Fabiola, enxaqueca. Em outro, a avó do Edu faleceu e a Katia pegou uma gripe. Por falta de quórum, deixaram de se reunir.
Até hoje, quando alguém pergunta o motivo do fim daqueles animados encontros, eles desconversam
- A estabilidade política...

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Brie com mel

No jantar...
- E ponto. Foi o que respondi
- Ahã
- Ahã?
- É. Por que?
- Eduardo, como 'por que'? Você não entendeu a sagacidade do meu comentário? O tom, a pontuação, o timing. Elementos que fizeram a minha resposta ser absolutamente hilária.
- É?
- Você só pode estar perdendo sua tenacidade intelectual
- Você acha mesmo?
- Sim. Você não entende mais as minhas piadas
- Claro que entendo. Simplesmente não achei graça
- Não é graça. É humor inteligente, para refletir e não simplesmente responder com grunhidos
- Ana Paula, você estava me contando a resposta que deu. Eu entendi. Desculpe não estar refletindo
- Antigamente você admirava minha perspicácia. Aplaudiria esta mesma resposta e complementaria com "é por isso que eu te amo"
- Ana...
- Costumávamos completar as frases um do outro. Éramos como brie com mel, pastel com caldo de cana, goiabada com queijo
- Estou apenas cansado, o dia foi puxado. Não é uma crise conjugal, por favor, não exagere
- E hoje somos como, como...
- Como?
- Manga com leite, churrasco com Chardonay, seu sistema digestivo com azeite de Dendê
Eduardo caiu na gargalhada. Não conseguia segurar o riso. O tom, a pontuação e o timing tinham sido perfeitos
- O que foi Eduardo? É sério. Qual a graça?
Ele pensou em responder "é por isso que eu te amo". Mas o dia fora longo.
- Nada. Passa o sal?

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Vida do outro

- Por favor, um espresso
- Acompanha algo para comer?
- Não, depois já pode trazer a conta. Hoje vim sozinha, programa rápido.
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- Um milhão, não menos que isso
- Mas por quantas cabeças de gado?
- Meu caro, são Angus
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- Pensei em flores. Orquídeas 
- Por todo o salão?
- Sim. Brancas
- Já sei, quer um casamento angelical
- Este é o ponto
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- Meu pai não me deixava sair de casa
- Nunca?
- Somente acompanhada por meus dois irmãos
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- Wagner, entendo de valores. Comprei um lote semana passada por oitocentos mil
- Mas você não viu o meu gado. É de primeira, de primeira
- Preciso avaliar
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- Pensei em finger food
- Perfeito
- O Rô diz que mereço um casamento de rainha
- Isso é que é amor
- Pena que...
- O que?
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- Ah, mas se meu pai sonhasse metade das coisas que eu fiz
- Ah é?
- Lembra do João?
- O filho do caseiro?
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- Avaliar o que, meu caro?
- Acha que nasci ontem?
- Pela barba branca certamente não
- Olha...
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- A vulgar da Sônia estará lá
- Quem é?
- A ex-namorada do Rô. Continua amiga da família
- Posso pedir para o garçom derrubar Bloody Mary no decote
- Tem como?
- Faz parte do pacote
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- Senhora, aqui está o espresso e a conta
- Esquece. Pode trazer um clericot. E seria possível abaixar o volume da música?

terça-feira, 1 de abril de 2014

Pacotes

- Moça, não sei não 
- Que foi?
- As pastilhas de freio desgastaram e isso estragou o engate, que afundou a parafuseta, que forçou a saída principal, que detonou o motor. Essa é a chave do funcionamento, o que chamamos de 'necessidade de manutenção'
- Hã?
- Uhum
- E agora?
- Ah, dona, vamos ter que trocar tudo
- Tudo?
- Fora o balanceamento, geometria e o alinhamento. A famosa combinação 'direção e suspensão' 
- Precisa?
- Senão é provável que o carro pare na próxima esquina e só saia de guincho
- E quanto custará tudo?
- Deixa eu calcular: isso, mais o fluido de motor, de ar-condicionado, de para-brisa e de maçaneta. O conhecido pacote de itens essenciais
- Certo
- Mil e duzentos, dona
- Então faz assim: troca o óleo, parcela no crédito e devolve a chave
- Hã?
- A famosa sigla TPM