quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Felicidade em vinte vezes sem juros

Sou uma entusiasta do capitalismo, entendam bem. Mas realmente a extravagância saiu do controle, em minha não tão humilde opinião.
O mercado de clichês - ops, de casamentos - por exemplo:
- Ana, quer casar comigo?
(Ajoelha-se, abrindo um anel de muitos quilates parcelado em 85 anos)
- Sim, Adalberto, sim, mil vezes sim!
(Choro)
Pronto. Tendo saído tudo conforme o planejado por ambos no pré-enlace, prosseguem com o planejamento.
- Tulipas brancas.
- Em todas as mesas?
- Sim, e no palco.
- Mas e o orçamento?
- Adalberto, sonho com este dia desde a minha primeira infância
- Até com as tulipas?
- Brancas.
Nada que não se possa parcelar em mais alguns anos. Juntamente à banda de vinte integrantes, show de escola de samba, vestido da noiva, cortejo e daminhas, comida para quinhentos convidados, kit de banheiro (imaginem o horror de não haver cotonetes personalizados para uma emergência), móveis de design italiano, pufs descontraídos, brigadeiros gourmet, picolé da moda, havaianas (as legítimas) e bar de caipirinha. 
- O que? Você quer que tenha um massagista no banheiro?
- No casamento da Júlia teve.
- Pirou?
- Lembra? Meu sonho...
As feiras de casamento estão aí para mostrar que isso é um pacote extravagante de tem-que-ter - delírios included - sem o qual, desculpe, você não será feliz para sempre. Então bora hipotecar os primeiros vinte anos da vida a dois.
Repito quantas vezes forem necessárias: faço parte do fã clube do capitalismo. Mas ando incomodada com esta felicidade meio pasteurizada. Ser feliz para sempre tem a ver com mãos dadas, olhar nos olhos e rir da piada do outro, mesmo que menos por graça e mais por amor. O pacote pelo qual pode-se pagar, sinto muito, é delírio sem garantia de nada...
- Estava lindo o casamento, né?
- Sei lá, achei meio estranho o gosto do bem-casado trufado
.... Nem do dinheiro de volta.


terça-feira, 26 de agosto de 2014

Brigadeiro de colher

Ainda estou para conhecer coisa mais chata que sair para comer com food-chatos.
Almoço de domingo:
- Boa tarde senhores, a sugestão do dia é filet sobre cama de batata-doce, acompanhado de salada ao molho Dijon.
- A salada é orgânica?
- Sim.
- Nem a batata teve contato com agrotóxicos?
- Não.
- O filet foi selado para manter suas propriedades proteicas?
- Sim.
- O valor nutricional do prato como um todo está dentro da tabela de necessidades diárias para uma pessoa com IMC regular?
- Sim.
- O molho Dijon é glúten free?
- Exato. Aceitam o prato?
- Aceito.
- Eu não. Perdi a fome.
Claro que precisamos cuidar da alimentação, do planeta, da vida e etecetera e tal, mas quando comer virou tarefa tão maçante? Está certo que nunca tive problema com peso, o que pode tirar a credibilidade do meu argumento, mas sigam o pensamento: comida é prazer! Pronto, fim do pensamento.
Vamos cuidar da alimentação? Então façamos a feirinha orgânica, montemos um cardápio balanceado e colorido. Viva as frutas, os legumes, a pirâmide nutricional, o Whey até. Mas quando sairmos para comer, sejamos um pouco Nigella.
- Boa tarde senhores, a sugestão do dia é filet sobre cama de batata-doce, acompanhado de salada ao molho Dijon
- Perfeito. E de sobremesa?
- Torta de avelãs com cumbuquinha de brigadeiro
- Ótimo. Traz uma porção extra que eu vou comer de colher 
E que o almoço de domingo viva feliz para todo o sempre.




segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Terapia de casal

"A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida"
(Vinicius de Moraes)

- Boa tarde, eu sou a Dra. Clarissa.
- Olá, Fernanda.
- Prazer, Fábio.
- Por favor, sentem-se. Falem um pouco sobre vocês, o que os trouxe para a terapia?
- Na verdade, eu amo a Fê. Por mim, nem precisaríamos estar aqui.
- Eu adoro o Fá, temos uma boa relação
- É...
- Estamos juntos há cinco anos
- É...
- Fala também, Fábio. Só eu falo?
- Quem quis vir aqui? Hein? Hein?
- Mas você aceitou.
- Por não aguentar mais escutar reclamações.
- Viu Dra. Clarissa? Como você pode começar a notar, ele gosta de minar minha auto-estima.
- Mas ela vive reclamando. Eu não mino sua auto-estima, apenas sou sincero.
- Então porque não usa sua sinceridade para assumir que não me ama mais?
- Amo sim, mas...
- Mas?
- Não quero ter filhos agora. Ponto.
- Quando você quer? Quando eu tiver cinquenta anos?
- Eu preciso de um tempo. Quero avançar na carreira primeiro, me estabilizar...
- E o meu relógio biológico? Ah, esquece, não faz parte de sua planilha...
- Dra. Clarissa, ela acha que por eu não querer filhos agora, não a amo
- E não é? E não é?
- Não!
- Tudo tem que ser do seu jeito, Fábio.
- Não é hora, Fernanda.
- Então faz um favor, pegue esta planilha onde você projeta cada passo da sua vida, suas roupas, sua escova de dentes e saia do meu lado de uma vez por todas!
A sessão acabou. Acertaram o valor e agendaram outro horário, embora ambos insistissem que não haveria próxima vez. Saíram porta afora, seguindo caminhos distintos.
Fábio ainda olhou para trás, a tempo de ver Fernanda firme em sua opinião, caminhando decidida. Era final do dia. E ela virou de volta para ele. 
No mês seguinte, estava grávida. 
Para Dra. Clarissa, voltaram apenas para explicar:
- Não era hora. Segundo minha projeção, seria para daqui a uns três anos. E sou muito racional, extremamente firme em meus argumentos.
- E o que o fez mudar de idéia?
- Os olhos dela. Ele brilham quando cai o sol.














quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O planeta sem margarina

Estes dias, uma conhecida cronista de Porto Alegre escreveu um texto sobre falta de educação e citou em sua extensa lista, pais cujas crianças fazem birra em locais públicos e mães que deixam os filhos brincarem com tablets em restaurantes ("não querido, tablet não.... Estamos num comercial de margarina, então vamos fazer uma refeição de duas horas e conversar. Isso, sorrindo..."). Enquanto lia, quase engasguei com o suco, mas como meu filho tropeçou em seguida, não tive tempo hábil para tal. 
Uma das mudanças mais interessantes que a maternidade proporciona é a intimidade súbita entre mães: você sentada numa mesa de restaurante, quando chega outra mulher com duas crianças a tiracolo, uma berrando, a outra pedindo para fazer xixi e imediatamente vocês se reconhecem sorrindo mutuamente, como que dizendo "Olá conterrânea planetária". Sim, porque se os homens são de Marte e as mulheres de Vênus, as mães definitivamente compõem uma subclasse distinta, ocupando uma extensa região do planeta feminino ou até, outro astro todinho delas.
E uma vez inseridas na categoria, ou advindas da tal região extraterrestre, passam a trocam intimidades como se fossem amigas de infância:
- Acho que a pega do meu bebê não esta correta. Ui. Arde quando ele mama.
- Peraí, eu te ajudo. Isso, senta mais para lá, deixa o seio nesta posição. Ahã, posso mexer? OK, isso. Viu?
- Nossa, ficou perfeito.
E assim, numa fase em que você considera que 'O que esperar quando se está esperando' mereceria o Nobel de literatura, que a única política interessante é a de trocas e devoluções da loja infantil mais próxima e na sua última viagem mal notou a paisagem, mas tirou quatrocentas e vinte fotos do seu filho, vocês tem umas às outras, já que para o resto da sociedade passaram a ser aquela mulher que 'Afe, não fala de outra coisa'.
- Vocês viram a situação da Ucrânia?
- Ahã.
- Hum... Não muito.
- Gente, faz oito dias que o Fabinho acorda de três em três horas a noite toda.
- Não acredito, já tentou o Nana Nenê? Tem gente que detesta mas em casa funcionou.
- Eu prefiro a técnica da Encantadora de Bebês. Quando ele chorar, entra no quarto...
O mercado já notou esta explosão de hormônios e necessidade de agregação, passando a oferecer serviços voltados para o público materno:
- Esta hidrodinástica é ótima, a gravidez me deixa com retenção de líquidos
- Isso que você ainda está no segundo trimestre. Eu mal ando. Sexo então, nem pensar.
- Aliás, prazer, Anabela
- Prazer, Juliana
Então, passada a fúria da carapuça que vestiu com o tal texto, resolvi relaxar. Afinal, cada um que converse com seus iguais. Quem sabe um dia, conterrâneas, também não sentemos numa tarde silenciosa, jogando conversa fora, discutindo política, Nobel de literatura e viagens culturais? E quando bater a fome:
- Garçom, me traz uma porção de margarina?

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Varal bege

Da janela da área de serviço, conseguia enxergar o que se passava no apartamento dos vizinhos. Era a parte lateral do pequeno edifício e onde encontravam-se os estendedores de roupas do 101 ao 804. 
Sabia, por exemplo, que a vizinha do 502 era artista, pelos aventais manchados de tinta. O casal do 404 era metódico, combinavam sempre os pijamas e a roupa de cama. O estendedor na janela do senhor do 704, quase sempre vazia, denunciava que ele devia mandar as roupas para uma lavanderia ou simplesmente, a esta altura da vida, tinha desistido de cheirar a sabão em pó. A vizinha ruiva do 303 - intrigante - lavava apenas lingerie. A família do 201 tinha acabado de aumentar. O rapaz do 703 terminara um relacionamento. O extravagante músico do 803 misturava roupas coloridas às brancas na máquina de lavar. A senhora de meia idade do 202 aumentara consideravelmente o tamanho dos seios. Os recém casados do 401 eram fãs de chantilly. E Ana imaginava se os vizinhos também conseguiam desvendar pequenos detalhes da vida dela analisando seu varal, monótono, coberto de roupas de tom bege.
O curioso, no entanto, é que apesar da intimidade exposta no edifício Saint Tropez, os vizinhos cumprimentavam-se apenas com um aceno de cabeça e no máximo um "Esfriou, né?" ao cruzarem-se nos corredores, no elevador ou na garagem. Sabiam a cor da roupa íntima que o outro usava, detalhes de sua vida privada, de sua situação estomacal, mas não ousavam cruzar a barreira do manual politicamente correto da impessoal vida em cidade grande:
- Olá 
- Boa noite
- Tchau
- Até mais
Então chegou o dia da reunião de condomínio, que ocorria a cada seis meses sempre convocada pelo síndico, o senhor de poucas roupas no varal. Ana desceu de roupa bege e um rabo de cavalo, exatamente como seu varal sugeriria a um vizinho mais atento. 
Foi lida a pauta do encontro e, após definirem repintar o teto azul do hall, podar o Ficus da entrada e escolher um local apropriado para o carrinho de compras, abriram o espaço para assuntos gerais. O rapaz do 703 começou:
- Temos vizinhos que não respeitam o horário de silêncio...
- Ih começou!
- Sim, comecei. Gosto de dormir cedo.
- Cara, é minha profissão. Pior você, que não recolhe as necessidades de seu cão na calçada.
A senhora dos seios grandes entrou no debate:
- Não critiquem os animais, não critiquem os animais.
- Ah é, minha senhora? E seu papagaio que imita o som de assoar o nariz?
- Imita do vizinho de cima.
- Eu?
- Sim. Poderia ser mais silencioso, não?
- Minhas intimidades não dizem respeito a você.
E os ânimos começaram a se exaltar. Levantaram-se, xingaram gerações anteriores e futuras, apontaram o dedo para imperfeições diversas. Ana permanecia observando. Até que pisaram em seu calo:
- Culpa da vizinha bege!
- Eu?
- Sim. Sua cantoria no banheiro é absolutamente irritante.
- Irritante é olhar suas calcinhas minúsculas e multicoloridas dia após dia!
- Invejosa!
- Exibida!
No instante seguinte, estavam rolando pelo chão, puxando os cabelos uma da outra. A vizinha da lingerie teve um apoio maciço do público masculino, o que deixou a noiva do 401 visivelmente alterada (provavelmente esta noite não teria chantilly). O síndico pediu a palavra:
- Agradeço a presença de todos, mas já são dez da noite. Assuntos pendentes serão tratados na próxima reunião e assim, dou por encerrado este encontro.
Todos levantaram-se, pegaram seus pertences e saíram porta afora. Dividiram o corredor e o elevador como desconhecidos, com rostos plácidos e seguindo o protocolo politicamente correto da vida em cidade grande, despediram-se:
- Boa noite
- Tchau
Ana entrou em seu apartamento e foi direto recolher as roupas do varal. 'Vizinha bege' era demais, a sirigaita do 303 que aguardasse a próxima reunião. E até mais.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Cada coisa em seu lugar

Foi só entrarem no carro:
- Você notou?
- Notei o que?
- Francisco, você me chamou onze vezes durante o aniversário. "Rose, o Rafa caiu", "Rose, o Rafa quer fazer xixi", "Rose, o Rafa pegou o brigadeiro do chão".  Custava ter interrompido sua conversa com os outros homens e me ajudado? É sempre assim.
- Rose, eu mal te chamei. Você passou a festa a postos, pronta para qualquer intercorrência
- Claro, que outra alternativa eu tenho?
- Como assim?
- Passo a vida cuidando, não tenho mais tempo algum para mim. Quando estou ausente, o mundo desaba.
- Ah é? Pois vamos ver.
Francisco - indignado, ferido, receoso, em pânico - sugeriu que ela fizesse um longo programa no sábado seguinte "Se o problema é esse, saia, sem medo de ser feliz". 
Rose - aliviada, desafiadora, receosa, em pânico - acenou concordando.
Mesmo com o pesar de utilizar o filho como cobaia para a aplicação prática do instinto paterno de Francisco, Rose agendou, pé, mão, corte, luzes, massagem, máscara facial, almoço, chá da tarde, cinema, happy hoje, sarau. Divertiu-se de forma inusitada e voltou para casa levemente bêbada, cantarolando a música da borboletinha.
Ao colocar a chave na porta, inspirou, antecipando o triunfo. Três, dois, um. Silêncio. Como ninguém vinha recebê-la, entrou a procura da família. Almofadas no chão e poltronas do avesso anunciavam a tragédia.
- Olá?
- Oi amor - Francisco apareceu com Rafa no colo, corado e sorridente
Uma onda de alívio percorreu seu corpo. Sobreviveram.
- Como foi?
- Tudo tranquilo. Pedimos pizza, brincamos...
E Francisco descreveu um dia comum. Sem loucuras extraordinárias, apesar de estarem descabelados. Sem nutrientes, apesar de estarem rechonchudos. Sem agasalho, apesar da temperatura de outono. De fato Rose surpreendeu-se com o sucesso da operação. Independente da falta de ordem, da sopinha de legumes e da roupa apropriada, lá estavam eles. Bem. Felizes. Exaustos. Sorridentes. Independentes. Finalmente ela poderia seguir adiante, sem ser essencial para o funcionamento do lar. Finalmente! Ahã. Ótimo. Tá. E agora?
- Ah, Francisco! Fraldas abertas no lixo da pia? Francamente. Entende o que eu vivo dizendo?



quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Porque sim

Já deve ter acontecido com você: o súbito momento em que percebe, para o bem do seu microcosmo, fingir. Fingir achar uma piada engraçada, fingir que seu emprego te completa, fingir não sentir falta do descompromisso, fingir se identificar com aquele grupo de amigos, fingir amar outra pessoa. Fingir amar. Parece forte, mas além da conotação catastrófica, engloba situações em que você mal se dá conta que entrou no módulo automático de adequação protocolar ou que a mistura ímpeto-hormonal gera uma explosão finita facilmente confundida com amor.
Aconteceu comigo há alguns anos, quando acordei com o barulho do mar, numa cama de casal desfeita.
- Onde estou?
- Em Maresias
- Isso eu sei
- Foi você quem perguntou
O que eu queria mesmo, era saber como aquela pessoa - que não era eu - tinha ido parar ali
- Viajamos durante a noite. Pronta para sair?
- Sair? Hoje é sábado, são sete horas da manhã...
- E as ondas estão perfeitas
Céus! Eu nunca gostei de praia. A paisagem é linda e tal, mas tenho aflição do barulho que surge da fricção dos pés na areia e a água do mar deixa o corpo grudento. Dois dias por ano sentindo a brisa oceânica e considero a meta como cumprida, pelo bem da vitamina D. E agora lá estava eu, num superávit impensável, passando mais de cem dias por ano em paraísos litorâneos, acordando antes do meio dia aos finais de semana e entendendo sobre métrica de ondas.
- Com o perdão do trocadilho, esta não é minha praia
- Começou...
- Está vendo a cor da minha pele? De tão branca, é possível acompanhar ao vivo o percurso completo da artéria aorta
- Ótimo, bronzeie-se
- Eu não quero me bronzear. Eu quero passar um final de semana no campo, deitada numa rede, jantando calorias ao invés de complementos nutricionais
- Vamos para a praia. Você pode fica deitada na areia lendo seus livros, sem sociabilizar com as outras mulheres, como, aliás, sempre faz
- Eu gostaria de sociabilizar com os meus amigos, que estão a kilometros de distância, conversando sobre qualquer outro assunto que não inclua a palavra mar
- Eu achei que você adorasse essa vibe
- Achou? Ou nunca se importou?
- O que você quer que eu faça?
- Faça parte da minha vida
- Eu não pedi para você abdicar dela
Arrumei a cama, a mala e o rosto, inchado como o de quem chora no cinema, por uma história que não lhe pertence. Mais uns dias e arquivei a história numa caixa de sapatos. 
Reprogramei meu roteiro. 
Acabou. Por tudo. Porque sim.
E embora muitos insistam que esta não é uma resposta, quando se decide acordar, ela pode ser a melhor delas.