sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Fátima procura

Tudo o Fátima procurava era uma vida normal. Rotina. Arroz com feijão. Suas amigas estavam todas casadas e com filhos - alguns já adolescentes - e ela ainda buscava um amor para compartilhar a vida, os sonhos e o IPTU. Não era daquelas que convivem bem com a solidão. 
Os amigos não entendiam como, após tantos anos, ela ainda não encontrara um par - "Exigente demais", costumavam dizer - e resolveram ajudar.
Fátima, a exigente, tinha agora encontro marcado com Felipe, amigo de Joyce. Ele era alto, galanteador, míope e calvo. Nem bonito, nem feio. Trabalhava no ramo de transportes, seja lá o que isso quer dizer. Apesar da profissão, teve um problema com o carro na noite agendada e ambos seguiram de taxi até o restaurante italiano do centro. Toalhas de mesas xadrez, vaso pequeno de centro com uma rosa solitária. Tradicional. Ela queria um 'linguini à milano', mas ele a convenceu de dividirem um 'spaguethi ao sugo'. Ele pagou a conta, abriu a porta do taxi (tentando redimir a carona frustrada) e ela nunca mais atendeu seus telefonemas.
"Talvez uma revolucionária dos bons costumes".
Fátima, a exigente e revolucionária, tinha agora encontro com Carlos, amigo de Amanda. Loiro, de estatura mediana e barba por fazer. Lindo, de alto risco a corações fracos. Ou iniciantes. Não possuía carro, mas uma moto potente. Adepto da teoria "mulher que goza divide o motel", fazia o tipo cafajeste. Ofereceu o motel mas Fátima, em sua garupa, recusou. Comeram sanduíche no bar da esquina mais próxima e Carlos falou bastante sobre... Carlos. Despediram-se e ela nunca ligou de volta para o número que ele anotou, com caneta Bic, em seu decote.
"Ela é sofisticada, isso é certo".
Fátima, a exigente, revolucionária e sofisticada, tinha agora encontro com Francisco, amigo de Fernanda. Gel no cabelo, calça skinny e, ela jurava, fazia biquinho para pronunciar as vogais fechadas. Levou-a até um restaurante sofisticado em seu carro cheirando a couro recém batido. Pediram Chardonay para harmonizar com foie gras au berre. O maitre o chamava de senhor Francis e, pela simpatia de sempre, ele deixou uma gorjeta gorda, que ele pediu a Fátima que dividisse 'meio a meio', junto com a conta do restaurante. Deixou-a em casa e pediu seu telefone. "Mas qual a operadora?". Ele nunca mais retornou, talvez por não estar cadastrado na promoção "Tim para Tim".
"Ela é mesquinha, precisa ter um parceiro generoso".
Fátima, a exigente, revolucionária, sofisticada e mesquinha, tinha agora encontro com Elizeo, amigo de Carola. Pele alva, voz alva e papo alvo, cumprimentou-a entregando flores. "A senhorita está bem?", "Sim e você", "Também, com a graça do Senhor". Rumaram à casa do Senhor e passaram a noite em sua companhia. Fátima foi à confissão e Elizeo estranhou a demora e a lista que ela trouxe na saída. "Pra não esquecer". O gentil rapaz a deixou em casa, solicitou o telefone "por obséquio" e a convidou para o baile da paróquia que seria no final de semana seguinte. Fátima agradeceu, tomou um porre e esqueceu onde deixou a lista.
"Cética, busca racionalização em tudo".
Fátima, a exigente, revolucionária, sofisticada, mesquinha e cética, recusou delicadamente as sugestões dos encontros seguintes organizados por amigos.
Dizem que anda retornando as ligações de Pedro, tatuador de renome, um pouco acima do peso e com as contas em dia. 
Ainda é cedo para saber se compartilharão a vida e dividirão o arroz com feijão. Nunca é fácil prever. Nem com quem esconde todos os seus adjetivos.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Feliz 2015

Tradição é coisa séria. Foi por isso eu peguei uma folha em branco, num dia ensolarado, em meu café preferido da cidade e escrevi por horas. Rascunhei, rabisquei e refiz o texto algumas vezes. É a minha tradição e no primeiro dia de cada ano, reservo uma tarde para ela. 
Uma introdução é sempre bem-vinda: lá no final de 2005, vivendo longe de tanta gente, resolvi escrever um e-mail de final de ano contando muito do tinha  acontecido nos últimos trezentos e sessenta e cinco dias. Enviei e me arrependi alguns segundos depois - não seria completamente desinteressante saber detalhes tão pequenos da vida de alguém comum? Acontece que para a minha completa surpresa, o retorno foi incrível e minha caixa de entrada ficou cheia de mensagens lindas e próximas - apesar da distância. Como se não bastasse, foi divertido demais. Vivemos dizendo que o ano voou e às vezes não paramos para pensar nos detalhes que fizeram com que iniciássemos este período de uma forma e acabássemos de outra. A gente muda a cada trezentos e sessenta e cinco dias e colocar isso em perspectiva é terapia das melhores.
Nestes anos, acabei expandindo o e-mail para o blog e depois, para a mídia a social. Da família e amigos próximos, para os menos íntimos. Para os que encontro quase sempre e os que quase nunca (ou nunca). Houveram os anos intensos e os com acontecimentos completamente corriqueiros. Teve até um em que decidi não escrever e acabei intimada por tantas pessoas queridas já com um pezinho no réveillon. E até hoje, guardo numa pasta todas - todas - as respostas destes últimos dez anos. Estou pensando seriamente em renomeá-la 'felicidade'.
E assim, para descrever 2014, eu preparei um texto enorme. Li e reli. Em seguida, apaguei tudo. Dez anos é muito tempo e seguir o mesmo formato é absolutamente... Monótono.
Lembrei que, algumas semanas atrás, encontrei uma amiga que não via há tempos e colocando a conversa em dia, escutei dela uma frase libertadora: "aprendi a me permitir mudar de convicções". Perfeito. No aprendizado dela, a perspectiva do meu ano. Dos meus anos. Resolvi que a mensagem desta vez teria a ver com mudanças de script. De como muda a vida e também nossa forma de encará-la. Afinal, aconteceu comigo inúmeras vezes.
Para fazer sentido. 2003:
Recém-chegada ao Rio Grande do Sul, estava surpresa com minha dificuldade de adaptação à cidade. Poucas referências, poucos amigos e pouco tempo disponível. Durante o dia, trabalhava no marketing de uma das marcas mais queridas dos gaúchos e em seguida, partia para um MBA, seguindo o protocolo redondo de quem almejava uma carreira executiva. 
Além disso, tinha outro recém: o casada. E o primeiro ano só diz que é uma lua-de-mel quem já esqueceu. Ou casou virgem. Ou quem gosta de brincar de Senhora Perfeitinha, vai saber... O começo é completa (e nada simples) adaptação e do sucesso dela, vem as chances potenciais de olhar para a pessoa que dorme ao seu lado e, em algum determinado momento, perceber que sua vida não faz mais sentido sem ela. 
Mais alguns anos. 2009:
Joguei minha carreira executiva para o alto, cansada de obedecer horários, e fui trabalhar com vendas. Rodei este estado de Vacaria a Pelotas, sempre sem ver a hora de retornar à Porto Alegre, cidade que já amava. Voltar para São Paulo, nem pensar. Aqui eu tinha referências, amigos e uma casa recém construída. Também aqui nasceu, neste ano, minha primeira filha, iniciando a parte mais incrível da minha vida e também a virando, junto com meu casamento, de cabeça para baixo. Hora de reaprender a andar de mãos dadas com a cabeça cheia de novas preocupações, madrugadas sem dormir e novos papéis a assumir. Muita adaptação. E a pessoa que dorme ao meu lado continua sendo aquela sem quem eu não viveria - mesmo (e especialmente) quando entre nós, alguém veio trazer cheirinho de talco no meio da noite.
Por fim. 2014:
Nos últimos anos, abandonei a representação comercial e, mordendo a língua, tive uma intensa fase de mãe em período integral (agora de dois). Em seguida, voltei à ativa, abri e fechei uma empresa de assinatura de frutas picadas, inaugurei outra virtual para vender presentes e escrevi um livro, projeto de completa realização de sonho que eu, fazia anos, deixava para 'um dia, quem sabe' (todas as palavras entre o "fechei" e o sabe'" couberam nos últimos trezentos e sessenta e cinco dias).
Hoje eu não voltaria para São Paulo, mas já não me apego a Porto Alegre. E minha cabeça está repleta de planos. Bons - porque prefiro meu copo sempre meio cheio - mas ambiciosos, com potencial capacidade de mudar o script.
Mudei muito e, além do aprendizado, ganhei de presente a oportunidade de experimentar a minha vida. Perseverança é necessária quando a gente escolhe os caminhos que quer seguir.
E um deles, eu escolhi: a pessoa que dorme ao meu lado. A vida, eu quero experimentar ao lado dele. E dos que vem dormir - chutar, revirar e abraçar - entre nós no meio da noite.
Que em 2015, possamos escolher essências e nos permitir quebrar convicções. 
Feliz vida!




quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Uma sociedade hipatética

A confraria era exclusiva e os encontros ocorriam sempre que o convite - rococó - indicava as iniciais RSVP. Algum chateau sempre muito bem adornados abrigava estes guardiões dos bons costumes da alta classe. Eram nobres, em sua maioria mulheres, muito refinados e diferenciados, que sempre faziam questão de manter conversas interessantíssimas para provar que mereciam seu lugar ao sol. Ou ao lustre Baccarat.
Naquela noite, Gigi faria uma aparição pública e todas estavam extasiadas com a hipótese de uma selfie com hashtag. Imaginem só, tantas seguidoras, um sucesso tamanho, a arte de criar um look do dia e Gigi dispusera seu precioso tempo para comparecer à confraria. Interessante que a organização daquele evento dispusera espaço para um pequeno sarau intelectual onde apresentariam-se escritores, músicos e artistas de forma geral. Era quase uma inclusão social. De fato, eles sentiam-se muito agraciados com a oportunidade de criar para tamanho público consumidor. Prova disso foi o quarteto de cordas que distribuiu seu CD como brinde, os escritores tentando a todo custo oferecer seu livro para o convidado mais prestigiado e os pintores, esmerando-se em retratos das lindas mulheres, numa desleal concorrência com as selfies. Fez muito sucesso uma jovem que, sempre mantendo um sorriso no rosto, teve sua obra comprada, imaginem só, por uma senhora que fez questão de pagar tão contagiante era seu semblante.
Então, Gigi chegou. 
As mulheres presentes enlouqueceram, tentando tirar proveito de uma autoridade como ela. A pequena palestra, bem informal e blasé, regada a espumante brut, foi um momento único na vida de muitas convidadas. Era preciso absorver aquele conhecimento. Muitas acreditavam na ilusão de uma fórmula mágica para 'chegarem lá', mas Gigi deixou claro que conquistar aquela aura exigia um dom quase transcendental, completamente intuitivo. Foi embora rapidamente após uma breve sessão de fotos (o fotógrafo também presentearia as convidadas com a imagem revelada), deixando apenas um rastro de aroma francês no ambiente.
A noite acabou em sucesso absoluto. As convidadas partiram com um enorme sorriso no rosto e alguns brindes - CD, livros, retratos - e com a garantia de uma hashtag inesquecível, o que não tinha preço. Amanhã retornariam à rotina, mas inspiradas como nunca.
Os integrantes do sarau também estavam felizes. A sociedade enfim reconhecia seu valor e estavam quase chegando ao ponto máximo de sua carreira. Mais um pouco e finalmente deixariam o mercado de brindes promocionais.



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terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Desencontros

- Renata?
- ...
- Lucio!
- Lucio Siqueira?
- Ahã.
- Nossa, não acredito! Você não mudou nada! 
- Faz o que? Uns dez anos?
- Desde aquele dia...
- Pois é. O dia em que você não aceitou minhas investidas.
- Não foi por não querer.
- Claro que foi.
- Lucio, eu namorava.
- Quem quer, vira a mesa.
- Não vamos revirar o passado, o que poderia ter sido. Me conta de você. O que tem feito? Casou?
- Casei.
- Ah.
- E separei. Tenho dois filhos... O Gabriel e a Luiza, são gêmeos.
- Que graça.
- E você?
- Nada. Curtindo a vida louca.
(Risadas)
- E o Rafael?
- Terminamos o namoro depois daquele verão.
- Ah é? Por que?
- Não vem ao caso.
- Poderia ter sido diferente...
- Mas não foi.
- Foi paixão à primeira vista.
- Paixão acaba. Eu tinha uma história com o Rafael.
(Silêncio) 
- Você continua linda.
- Obrigada.
- Imagina se tivéssemos ficado juntos?
- Será que teria dado certo?
- Deixa eu pensar... Com certeza!
- Certeza? Por que?
- Feeling. Você não tem?
- Feeling, Lucio?
- Ué? O que tem?
- Gosto de elogio, flores e romantismo. Feeling é muito pouco.
- Ai, Renata, não começa.
- Em tantos elogios você poderia ter pensado. Feeling foi o fim.
- Ah, por que? "Eu tinha uma história com o Rafael" ajudou muito.
- Ué. E não tinha? Mas aceitei suas investidas e cá estamos.
- Preferia estar curtindo a vida louca?
- Como posso saber?
- Era para ser uma noite romântica.
- Era. 
- Quem mandou inventar essas fantasias?
- Amanhã pulamos direto para a parte da cinta liga.
- É Melhor. 
- Boa noite.
- Boa noite.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Quem tem medo do lobo mau?

A bruxa tinha uma verruga peluda no nariz. O escuro abrigava muitos fantasmas. E se minha mãe nunca voltasse para me buscar na escola? Ou não me escutasse gritar por socorro? Aquele tio de segundo grau, todo mundo tem. E agora: meu pai saiu de casa? Um estranho poderia me oferecer balas. E o tal do saco preto? A professora de português era muito brava. Será que eu teria amigos no prédio novo? A melhor comida do mundo era feita de minhocas. Será que o lobo me encontraria para fazer mingau? 
Eram alguns medos que quando eu crescesse, iriam embora.Talvez só quando eu casasse - cura de todos os males - mas iriam. Os adultos garantiam e de fato, pessoas que não choram, nos preparam achocolatado antes de dormir e não tem medo da professora de português, tem credibilidade suficiente para a condição de donos da verdade absoluta. 
E o tempo voou. 
Hoje, passados mais de trinta anos e de aliança na mão esquerda, eles realmente partiram. Apenas cederam seu espaço para aflições que, minuto ou outro, povoam meu pensamento.
Sabe, a economia, a inflação e o rumo político do pais. A América Latina anda debulhando o trigo (recolhendo cada bago e tal, para poder se fartar de pão). A Europa também não anda bem. Tem o anti-semitismo, né? Atenção ao parar no farol: já sabe, nada de reagir. Cadê a água? Meu filho quer ser médico, espero que desista. Eu não gosto de macarrão integral, e agora? Sabe como é, o glúten. Fora a crise láctea: quanto não é a lactose, tem o leite adulterado. Quanto custa o goji berry? Que horror a tal da margarina. "Filho, esta placa no aeroporto não é nada de mais, só não desgruda da mamãe em hipótese alguma, peloamordedeus". Tem as balas de estranhos, que continuam não sendo aconselhadas. Antes de deitar, precisa trancar a porta, os cadeados e ligar o alarme, ta? 
Mas está tudo sob controle, eu durmo tranquila com o cansaço e uma taça de vinho. Sou adulta. E adultos tem sempre razão: melhor preparar o achocolatado das crianças e dizer que tudo vai passar. Um dia eles sentirão falta de ter medo de fantasmas no escuro.


terça-feira, 25 de novembro de 2014

@eu

Muito se fala sobre os malefícios da vida conectada. "Conversem entre si", blasfemam os entusiastas do século vinte. "Naquela festa, as pessoas não saíram das mídias sociais", bradam os que insistem que tudo era melhor em seu tempo. "Já sei, vai pro Instagram", apostam os que nunca estiveram a ponto de frequentar um rehab digital. 
E assim eu, como viciada incorrigível e disposta a lutar para por meus ideais, resolvi elaborar uma lista com uma série de qualidades insubstituíveis da vida como persona @. Caso sintam necessidade, estejam à vontade para complementá-la:
- A vida com filtro é de uma beleza incontestável.
- As conversas sobre clima podem ser abortadas antes mesmo do tradicional "né?".
- TPM agora é sinônimo de fotos calóricas ou frases bem-humoradas.
- "Intervalo comercial" passou a ter o nome agradável de #lookdodia.
- Nós de fato passamos escolher nossos amigos.
- O Big Brother perdeu a concorrência e finalmente saiu do ar.
- Ao invés de usarem drogas ilícitas, as pessoas podem escolher enxergar o mundo através de mídias alternativas.
- As onomatopéias ganharam uma nova perspectiva com kkkkkkkk.
- As grossas 'Páginas amarelas' viraram pesadelo do passado.
- Com o 'delete', ninguém nunca mais precisará lavar a boca com sabão.
- Passamos a ter mundo de inspirações sem precisar sair de casa.
- Trabalhe, divirta-se, venda ou anuncie no conforto de seu sofá.
Mas é claro que existe a possibilidade de você não ter sentido-se tocado por algum dos argumentos acima. Sem problemas. Converse, reencontre amigos, cozinhe em grupo, passeie por uma praça arborizada. Mas lembre-se: existe uma revolução virtual acontecendo debaixo de seu nariz e serão apenas seus os benefícios de não fazer parte dela.

@nuritmasijahgil






quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Ô tia, tipo assim

O trânsito parou e diante da janela do passageiro, ele apareceu. Pele morena, sorriso lindo, cabelos cacheados e pose displicente, recostado ao muro verde. Quase abri a janela para puxar conversa, já que ele notou que eu o observava. Contive meu ímpeto, por sorte, mas teria dito:
- Menino, endireita a coluna e amanhã melhor sair com uma blusa mais fresca, por causa do calor, ta?
Choque! O muro verde era de um curso pré-vestibular e até pouco tempo, eu saia do colégio para almoçar na avenida Paulista e suspirar pelos 'meninos do cursinho' que caminhavam em direção ao Objetivo. De repente, passei a ter idade para ser mãe de todos aqueles representantes da raça masculina rebeldes e integrantes de bandas de garagem. 
Quando foi que a vida passou em fast foward sem meu consentimento?
Meu mundo andava cheia de sinais e talvez eu já devesse tê-los notado. O comprimento das minhas saias, os bocejos antes da meia-noite, as visitas constantes à osteopata ou a construção de frases sem a palavra 'tipo'. Mas este fato esfregou uma realidade que eu resistia a aceitar: para alguém de dezessete anos, eu sou tia. Tia!
Hoje, os representantes interessantes da mesma classe tem cabelos brancos (quando os tem), barriga saliente, filhos e quando querem ser rebeldes, exageram na cerveja. Fora que conversam, não gabam-se por cheirar acetona e já sabem que 'sem celulite' é propaganda enganosa de creme importado. De fato, os anos trazem mudanças significativas.
O trânsito andou. O menino deve ter continuado seu papo-cabeça-rebelde-banda-de-garagem e eu acelerei meu carro de tia, com dois assentos infantis no banco de trás e bolachinhas no porta-luvas para a hora da fome.
Pensei seriamente em terminar este texto discorrendo sobre o aprendizado e a experiência que o passar dos anos trouxe. As rugas, os cabelos brancos, alguma mensagem de auto-ajuda para a crise de meia idade. Pensei muito. Mas o final não poderia ser outro:
Céus! Eu tenho idade para ser mães dos meninos de cursinho! 


quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Foco

Já? Preciso mudar o toque deste despertador, definitivamente os dias devem ser melhores quando iniciados com música ao invés de té-té-té. Mais cinco minutos. Só mais cinco. Não acredito! Sete e meia! Melhor eu levantar. Bom dia cabelos, que mau-humor, hein? Lembrar de comprar mais pasta de dentes, esqueci nas duas últimas visitas ao supermercado. Visitas, rá... Quem é que "visita" um supermercado? Economizar é comprar bem... Céus, o telefone! Falta de bom senso ligar para alguém antes das oito da manhã. "Alô? Oi, oi... Imagina, não, eu acordo junto com o galo, ahã, ahã, o relatório está quase pronto, envio ainda hoje, para você também, tchau". Relatório. Em qual arquivo guardei? On a dark desert highway, cool wind in my hair... Essa sombra azul é linda mesmo... Warm smell of colitas. Ih, hoje eu tinha planejado começar a academia! Bom, agora já passei sombra, fica para amanhã. Café da manhã, preciso adquirir este hábito. Iogurte, perfeito. Gente, quem tem coragem de fazer comercial de Activia? O cachê deveria ser maior que o de posar para a Playboy. Pronto, chega de enrolar. On. Poderia haver um botão para ligar o cérebro também. Meu corpo pede cafeína. Café solúvel, baita invenção. On, agora vai. Ana está online, deixa eu aproveitar para agradecer o ingresso. Dez e meia! Quase horário de almoço e ainda não comecei a trabalhar. Depois eu acabo às dez da noite, preciso mudar esta rotina. Quando trabalhava na empresa, batia cartão e pronto, nada de enrolar. Em compensação... Onde eu coloquei o telefone do técnico da lava-louças? Aqui. Bom, depois eu ligo. Cadê o relatório? Relatorio, relatório... Achei. Vamos lá. Hora de agilizar. Só mais um café e deu. Acabou o adoçante! Deixa eu preparar uma lista: adoçante, espinafre, pasta de dentes... Devo ter um pouco de açúcar ainda. Um colher, pronto. Nada de mais. Amanhã, de qualquer forma, eu começo a academia. Meio-dia. Preciso melhor esta rotina. Preciso. É tudo uma questão de mudar o toque do despertador.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Intimidade

Apesar da criação tradicional, Carola não era exatamente púdica. Descobrira até bem cedo as tentações da vida e sucumbira a quase todas elas.
O primeiro beijo de língua aconteceu enquanto suas amigas ainda tentavam fazer tranças em bonecas. O baseado, o sexo e - por que não - o brigadeiro de panela em madrugada de fossa, todos antes do baile de debutantes do colégio, quando estreou a tatuagem de onça desenhada do pescoço ao cóccix sob o vestido de tafetá decotado.
Rodou o mundo, namorou, pirou, meditou, experimentou, separou. Repetidas vezes. Sabia que era moderna para os padrões da sociedade e, inclusive, nutria certo orgulho quando referiam-se a ela como uma libertina.
Mas aconteceu de um dia, voltando para casa no final da tarde, parar para observar a loja de colchões que recentemente havia inaugurado em seu bairro. Pé direito duplo, vitrine imensa de vidro, lustre de cristais vermelhos. Coisa fina. Lá dentro, um homem - nem bonito nem feio - parecia explicar para a vendedora o modelo que procurava. Enquanto Carola admirava a parede de tom preto, imaginando se a cor ficaria bem em sua recém reformada sala, a dupla seguiu em direção ao colchão da vitrine. O homem então deitou, virou de um lado, experimentou de outro, ficou de bruços, mexeu o corpo, aconchegou-se em conchinha.
Carola ruborizou. Ela jamais exporia tamanha intimidade. Uma coisa é sair pela rua exibindo sacola de sex shop, meio gosto, meio marketing. Outra, é mostrar-se de verdade para os transeuntes. Dormir é coisa íntima, sinceridade para poucos, sem fingimento, performance ou manual indiano. É você ali, pá, escancarado e sem qualquer filtro.
Tamanho fora seu incômodo, que ela deixou a passos largos a parede preta para trás. Era amor, ela tinha certeza. Trinta segundos de ternura que viraram paixão, que evoluíram para amor. Nunca sentira isso. 
No dia seguinte, voltou para a vitrine. Nada. Procurou aquele homem por uma semana. Nem sinal.
Carola ja experimentou de tudo um pouco, mas agora sua busca mudou. Ela quer beijos de bom dia com gosto de café, silêncios que não sejam constrangedores, escovas de dente encostando no banheiro, mensagens de amor às duas da tarde e roupa íntima pendurada no box. Alguém que a veja dormindo de meias no inverno, com pijama de algodão, cheiro de sabonete, placa de ATM nos dentes e ressonando de cansaço. De todas as tentações da vida, ainda falta sucumbir a uma delas: dormir de conchinha.



segunda-feira, 13 de outubro de 2014

It empreendedorismo

Estou tentando desvendar os mistérios do Instagram, o que pode parecer fútil, mas é uma necessidade empreendedora. Enquanto que em outras mídias sociais conquista-se uma legião de fãs desembolsando algum tutu (sim, meu linguajar entrega minha idade), na mídia das fotografias, o negócio é ser it.
Existem as it mães, que compartilham dicas de festas infantis pra casamento real nenhum botar defeito, técnicas para parir-em-casa-na-banheira-sem-anestesia e informaçõe sobre o complexo mundo das papinhas orgânicas. Ou as it fitness, que postam foto de músculos, suor e barriga tanquinho quatrocentos e vinte e cinco vezes ao dia, ignorando o fato de que existe vida após a academia (no meu caso, também apesar dela) e as it foodies, que encontram mais recheio, mais Nutella e mais crocância no pão nosso de cada dia.
Mas as que me intrigam mesmo são as it girls, o fenômeno mor da Matrix em que vivemos e que por algum motivo obscuro - pelo menos para mim - fazem o mundo feminino tremer com a correta combinação entre brinco, esmalte e pose no elevador. 'Look do dia' e um biquinho rendem duas mil e quinhentas curtidas, esgotam o estoque do tal esmalte em minutos e aumentam o índice do PIB brasileiro.
Certo, este mundo não me atrai: fui descobrir semana passada quem era Michel Kors e trocaria uma sola de sapato vermelho por uma lista de cerca de trezentos outros itens, mas este texto não é um manifesto. É pura admiração. Quisera eu postar uma foto com uma 'it pose' ao lado do meu produto, vender oito lotes em dez minutos e digitar a hashtag seguinte em Paris.
Mas não. Porto Alegre, café escritório e vibrando com cada curtida que não tenha relação genética envolvida. E vejam, eu poderia estar na livraria comprando algum título como 'Transforme-se num it fenômeno da noite para o dia' ou 'Mulheres que não fazem pose recebem poucos likes', mas prefiro analisar o biquinho, o olhar de diva, o penteado impecável e as infinitas curtidas. A minha hashtag está mais para 'talvezeunaotenhanascidoemvenus', mas continuarei estudando este fenômeno desconhecido dos biquinhos no elevador e sua relação com a bolsa. A de ações, tá?

#beijosqueridaaaaas #desabafododia #pelamorquechatice #mentiraémanifestosim #maspelomenoseusoufelizequemmedizéomeunariz #ThatsIt


terça-feira, 30 de setembro de 2014

Alô polícia, eu tô usando...

Antes mesmo de sabermos escrever nossos nomes, já fazíamos em grupo a coreografia de 'Não se reprima'. Roy e Ricky cantavam freneticamente disputando a preferência do toca discos apenas com o pato, a foca e a coruja que habitavam a 'Arca de Noé'. Mais tarde, decoramos o alfabeto, lembrando que a era amor, bê, baixinho e cê, coração. Se você fora um bebê Johnson's, agora provavelmente transformara-se numa potencial paquita (existia paquito?). Mas de qualquer forma, como não havia garantias de mandar um beijo pro seu pai, outro para a sua mãe e mais um 'para você', tratou de decorar o primeiro telefone da sua vida - 236-0873 -, na eterna esperança do número chamar e você ganhar uma Caloi. 

Se alguém da sua classe tivesse muitas canetas coloridas no estojo, certamente seriam importadas. Esta palavra, antes da China-mania, exercia verdadeiro fascínio aos olhos infantis. No mundo importado habitavam a Hello Kitty, os adesivos com glitter, o videocassete com controle remoto e o microondas. Os meninos, que desde sempre foram vidrados em carros, sabiam de cor e salteado as cinco marcas que existiam no mercado à época e conversavam sobre o assunto no recreio, enquanto as meninas batiam papéis de carta.

Quando os pais saiam sábado à noite, era o momento de ficar acordada até tarde assistindo Viva a Noite, viva, viva e cantando a onda da galinha azul. Mas bom mesmo era faltar na escola, encostando a parte de mercúrio do termômetro no abajour. Com sorte, 'A Coisa'  ou 'Os Goonies' passariam pela primeira vez na televisão.

Você era muito moderna de calça semi baggy, Keds, cabelos para o lado e topete. Jogava pogobol à tarde e já podia frequentar matinês das baladas. Alguns meninos poderiam sussurrar ao seu ouvido "meu amigo quer ficar com você" ao som de Dance Music e passos para lá e para cá. E sabia dançar muito bem, afinal, não perdia um bailinho da escola e raramente ficava com a vassoura, enquanto o dj tocava Like a Virgin e Calcinha Exocet.

Se é meu contemporâneo, gravava músicas do rádio na fita cassete, teve walk-man, tamagoshi, decorou como conseguir mais moedas no Super Mario Bros, vibrou com o 486 e muito mais tarde, o início da parte liberal e independente da sua vida teve como pano de fundo cinco inseparáveis amigos de Manhattan.

Podem chamar os anos oitenta de bregas e os noventa de 'quase tanto quanto'. Mas foram tempos incríveis. E nós saímos praticamente ilesos.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Tempero a parte

Cada pessoa utiliza seu método peculiar de relaxamento. Não vou criticar os adeptos do Rivotril sublingual afinal, eu mesma utilizo métodos pouco ortodoxos para deixar os pensamentos em slow motion - depois de abandonar anos de vida fumante, não abro mão da boa e velha dose etílica noturna. Mas acho interessante observar as formas mais criativas que cada um encontra para separar as obrigações do lazer.
Tem que mateie. Sim, verbo: eu mateio, tu mateias, ele toma chimarrão. Há os que espantam o stress levantando centenas de quilos em troca de suor e músculos. Tem quem leia ou escreva. Os que vão ao cinema e escolhem o filme (prática que desconheço há anos). Já ouvi falar de gente que só com sexo recreativo. Quem faça compras, escova, massagem. E os que utilizam métodos ainda menos ortodoxos que os meus.
Certa feita (desculpem, sempre quis começar uma frase assim), conheci uma moça que precisava sair do trabalho e apaixonar-se antes de voltar da casa. Pois é, batia o cartão e passava a buscar uma paixão. Lembro da noite em que apaixonou-se por uma escritora baiana, em plena sessão de de autógrafos na livraria da Alameda Santos. Entrou, pediu uma dedicatória, leu o livro inteirinho, voltou para casa, cozinhou com azeite de dendê e foi dormir. Às vezes, tinha que dar  explicações ao marido:
- Onde estava até esta hora?
- Procurando uma paixão.
Vícios são vícios e ele a aceitava como sempre fora, apesar de certa frustração. Ela já tinha se apaixonado por tulipas holandesas, café gourmet do serrado, mostra de cinema russo e pasta americana para cupcakes. Uma vez, saímos para colocar o papo em dia após o trabalho. A certa altura, eu já bocejava e cogitava pedir a conta, mas ela ainda estava aflita: sem paixão, não tinha como relaxar. Releu o cardápio, buscou algo nas mesas ao lado. Nada. Saímos para uma volta no quarteirão. Uma companhia de teatro alternativa fazia uma performance no farol. Olhei entusiasmada para minha amiga: sem calafrios. Na esquina, o lançamento de um empreendimento imobiliário. 'Quer parar?'. 'Os sinos não tocaram'. Desistimos. Ela voltou para casa, já pronta para passar a noite em claro, com os pensamentos a mil. Mas neste dia, o marido a esperava na sala. Seu coração disparou de alegria e alívio: estava apaixonada, incrivelmente seduzida. 
- Precisamos conversar.
Ela, louca por ele, escutou a história. Ele, por um viés da vida, conheceu uma escritora. Baiana. E estava apaixonado. Ela ofereceu cozinhar tapioca. Não era isso. Com acarajé e dendê. Não era fugaz. E ele partiu. 
Já faz alguns anos isso. Ela buscou tratamento, recuperou-se de seu irônico destino e hoje não corre mais riscos. Sai do trabalho e segue direto para casa. Cozinha, assiste a novela e antes de dormir, um relaxante sublingual. Sem café do serrado, cinema russo ou dendê. Para que a vida siga como deve ser.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Passaporte marciano

PASSAPORTE MARCIANO

Esta semana acontecem os festejos da semana Farroupilha no Rio Grande do Sul e coincidentemente, planejei passar os últimos dias em São Paulo. Que me desculpem os adeptos ao fogo de chão, mas uma pizza assada em forno a lenha veio bem a calhar. Explico.
Eu mudei apenas de estado e tento ao máximo adaptar-me à cultura local. Mas se a regra de etiqueta manda que em Roma, façamos como os romanos, a vida prática atesta: em Roma, você jamais passará de um marciano. Adoro o sul, mas nunca consegui emocionar-me com a chama crioula ou com a possibilidade de ver meus filhos pilchados. Sou uma pessoa com sotaque, o que atesta: 'tu não és daqui'. Não. Tenho casa, amigos e referências, mas não sou de lá.
Com profusão de mães orgulhosas postando fotos de suas filhas vestidas de prenda, lembrei de uma brasileira na Alemanha comentando estes dias que não conhece as cantigas de roda que sua filha, nascida do lado de lá do oceano, pede que ela cante. Não importa se mudou de país, estado ou bairro, você ganha status de marciano.
Acontece que em sua terra natal, você deixou de ter casa. E a culpa não é (só) das exorbitantes cifras imobiliárias. Seu lar mudou de endereço, seus amigos tem muitos novos amigos, além de filhos cujo nome você esquece e lá você também passa a ter sotaque. 'Você não é daqui'. Sou, sim. 'Estranho'. 
Mas antes que tu, você ou you limpe sua primeira lágrima, vou esclarecer o teor do texto: 
Que maravilha!
Passado o choque inicial de não poder frequentar a mesma padaria que sua família frequenta há cinco gerações, perde-se um pouco as amarras. Vou comer pizza porque não gosto de churrasco no espeto, mas depois volto, porque a Marginal está com um fluxo terrível. Sou daqui e de lá, além de que amanhã, posso estar acolá. 
Se eu prefiro São Paulo ou o Rio Grande do Sul? Escolho o sul. Mas tenho passaporte de marciano.
Afinal de contas, o mundo está cheio de padarias. E sotaque eu já tenho.


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Castelos de areia

- Inacreditável a cor do mar...
- Inacreditável mesmo é estarmos aqui, sozinhos, após tantos anos.
- Será que as crianças estão bem?
- É claro que sim. Vamos relaxar.
- Tem razão. Curtir essa areia branquinha...
- O Pedrinho iria adorar. Construir aqueles castelos enormes.
- Para a Laurinha brincar com as bonecas dela.
- Fantasiando sobre mundo encantados.
- Ai, ai...
- Tão bom termos tempo para conversar.
- Verdade. Olha, um rapaz vendendo queijo coalho!
- Se o Pedrinho estivesse aqui, já pediria três.
- Sempre, sempre. E a Laurinha escolheria um sorvete.
- De limão!
- Tirou as palavras da minha boca.
- ... 
- Delícia de temperatura.
- Ahã. Olha aquele bebê. Que fofo.
- Parece o Pedrinho quando era pequeno.
- Olhar sapeca, lembra?
- Claro. Como se fosse ontem.
- Acredita que passaram-se dez anos?
- O tempo voou.
- Demais.
- Anos incríveis. 
- Muito.
- Mas senti falta de passar um tempo só com você.
- Eu também. A gente acaba passando a vida em função dos filhos, né?
- Verdade. 
- E é bom podermos relaxar, namorar...
- ... conversar com calma sobre os mais diversos assuntos.
- ...
- ...
- ...
- Tem razão. Lembra daquela vez, com a Laurinha...


quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Dama, rei e curinga

Celso e Isabel estavam juntos há mais de vinte anos e eram, um para o outro, uma agradável companhia para passeios vespertinos, matinês no cinema, além da tradicional macarronada de domingo em família. Novidade não havia, mas viviam plácidos o dia-a-dia. Como seus filhos já não passavam muito tempo em casa, costumavam organizar encontros com casais amigos para animados campeonatos de tranca. Nestas ocasiões, o furor competitivo dos participantes era instigado. 
- Celso, você tinha um valete.
- Mas que nada. Bati direto.
- Levante, quero ver se não escondeu a carta.
- O que Aurélio? Está duvidando da minha idoneidade?
E a testosterona reprimida nas matinês dos filmes água com açúcar ficava evidente na sala do apartamento anfitrião, fazendo tremer os bibelôs da mesinha de canto. As esposas corriam para acalmar os ânimos, oferecendo água com açúcar e repetindo a recomendação médica "Olha o coração, olha o coração". A não ser Isabel. Algumas mulheres até achavam que o sorriso de canto exibia certo prazer:
- Isabel, o Celso vai ter um troço.
- Não vai não, ele está bem.
Naquelas noites, Isabel enxergava um traço neandertal em Celso e por isso, ela sempre tratava de cuidar para que houvesse café passado na térmica, petit-fours doces na sala e lingerie preta sob a roupa. Como os casais jogavam em dupla, ela, vez ou outra, para quebrar a monotonia, descartava um curinga:
- Isabel, você viu a carta que você jogou?
- Ai, Celsinho, foi sem querer.
- Ah, mulher, faça me o favor!
Celso batia nervoso na mesa. Isabel sorria de canto. A noite prometia.
Acontece que, com o passar dos anos, os filhos casaram e os netos começaram a chegar. A família voltou a frequentar a casa de Celso e Isabel e, bastava eles pensarem em agendar um campeonato, para o telefone tocar:
- Mãe, você pode cuidar da Julinha este sábado?
Ninguém entendeu quando Celso arrumou as malas e saiu de casa. 
- Deve ter arrumado outra.
- Pobre Isabel.
E o tempo passou. 
Celso, da euforia inicial de homem livre, leve e solto, passara à reclusão. Saia pouco e os amigos apostavam quem se tinha abandonado a esposa por outra, agora já estava sozinho. 
Um dia, o telefone de Isabel tocou:
- Bel?
- Celso? 
- Eu...
- Como você tem coragem de me ligar?
- Bel, deixa eu falar... Vamos nos encontrar.
- Nunca mais me ligue.
- Um passeio vespertino?
- Me esqueça.
- Estreou um filme ótimo...
- Passar bem.
- Tem aquele restaurante...
- Adeus.
- Uma partida de tranca?
Isabel não conseguiu resistir ao convite. E depois de descartar dois curingas eles tiveram certeza: eram dama e rei do mesmo naipe. E bateram direto.



quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Felicidade em vinte vezes sem juros

Sou uma entusiasta do capitalismo, entendam bem. Mas realmente a extravagância saiu do controle, em minha não tão humilde opinião.
O mercado de clichês - ops, de casamentos - por exemplo:
- Ana, quer casar comigo?
(Ajoelha-se, abrindo um anel de muitos quilates parcelado em 85 anos)
- Sim, Adalberto, sim, mil vezes sim!
(Choro)
Pronto. Tendo saído tudo conforme o planejado por ambos no pré-enlace, prosseguem com o planejamento.
- Tulipas brancas.
- Em todas as mesas?
- Sim, e no palco.
- Mas e o orçamento?
- Adalberto, sonho com este dia desde a minha primeira infância
- Até com as tulipas?
- Brancas.
Nada que não se possa parcelar em mais alguns anos. Juntamente à banda de vinte integrantes, show de escola de samba, vestido da noiva, cortejo e daminhas, comida para quinhentos convidados, kit de banheiro (imaginem o horror de não haver cotonetes personalizados para uma emergência), móveis de design italiano, pufs descontraídos, brigadeiros gourmet, picolé da moda, havaianas (as legítimas) e bar de caipirinha. 
- O que? Você quer que tenha um massagista no banheiro?
- No casamento da Júlia teve.
- Pirou?
- Lembra? Meu sonho...
As feiras de casamento estão aí para mostrar que isso é um pacote extravagante de tem-que-ter - delírios included - sem o qual, desculpe, você não será feliz para sempre. Então bora hipotecar os primeiros vinte anos da vida a dois.
Repito quantas vezes forem necessárias: faço parte do fã clube do capitalismo. Mas ando incomodada com esta felicidade meio pasteurizada. Ser feliz para sempre tem a ver com mãos dadas, olhar nos olhos e rir da piada do outro, mesmo que menos por graça e mais por amor. O pacote pelo qual pode-se pagar, sinto muito, é delírio sem garantia de nada...
- Estava lindo o casamento, né?
- Sei lá, achei meio estranho o gosto do bem-casado trufado
.... Nem do dinheiro de volta.


terça-feira, 26 de agosto de 2014

Brigadeiro de colher

Ainda estou para conhecer coisa mais chata que sair para comer com food-chatos.
Almoço de domingo:
- Boa tarde senhores, a sugestão do dia é filet sobre cama de batata-doce, acompanhado de salada ao molho Dijon.
- A salada é orgânica?
- Sim.
- Nem a batata teve contato com agrotóxicos?
- Não.
- O filet foi selado para manter suas propriedades proteicas?
- Sim.
- O valor nutricional do prato como um todo está dentro da tabela de necessidades diárias para uma pessoa com IMC regular?
- Sim.
- O molho Dijon é glúten free?
- Exato. Aceitam o prato?
- Aceito.
- Eu não. Perdi a fome.
Claro que precisamos cuidar da alimentação, do planeta, da vida e etecetera e tal, mas quando comer virou tarefa tão maçante? Está certo que nunca tive problema com peso, o que pode tirar a credibilidade do meu argumento, mas sigam o pensamento: comida é prazer! Pronto, fim do pensamento.
Vamos cuidar da alimentação? Então façamos a feirinha orgânica, montemos um cardápio balanceado e colorido. Viva as frutas, os legumes, a pirâmide nutricional, o Whey até. Mas quando sairmos para comer, sejamos um pouco Nigella.
- Boa tarde senhores, a sugestão do dia é filet sobre cama de batata-doce, acompanhado de salada ao molho Dijon
- Perfeito. E de sobremesa?
- Torta de avelãs com cumbuquinha de brigadeiro
- Ótimo. Traz uma porção extra que eu vou comer de colher 
E que o almoço de domingo viva feliz para todo o sempre.




segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Terapia de casal

"A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida"
(Vinicius de Moraes)

- Boa tarde, eu sou a Dra. Clarissa.
- Olá, Fernanda.
- Prazer, Fábio.
- Por favor, sentem-se. Falem um pouco sobre vocês, o que os trouxe para a terapia?
- Na verdade, eu amo a Fê. Por mim, nem precisaríamos estar aqui.
- Eu adoro o Fá, temos uma boa relação
- É...
- Estamos juntos há cinco anos
- É...
- Fala também, Fábio. Só eu falo?
- Quem quis vir aqui? Hein? Hein?
- Mas você aceitou.
- Por não aguentar mais escutar reclamações.
- Viu Dra. Clarissa? Como você pode começar a notar, ele gosta de minar minha auto-estima.
- Mas ela vive reclamando. Eu não mino sua auto-estima, apenas sou sincero.
- Então porque não usa sua sinceridade para assumir que não me ama mais?
- Amo sim, mas...
- Mas?
- Não quero ter filhos agora. Ponto.
- Quando você quer? Quando eu tiver cinquenta anos?
- Eu preciso de um tempo. Quero avançar na carreira primeiro, me estabilizar...
- E o meu relógio biológico? Ah, esquece, não faz parte de sua planilha...
- Dra. Clarissa, ela acha que por eu não querer filhos agora, não a amo
- E não é? E não é?
- Não!
- Tudo tem que ser do seu jeito, Fábio.
- Não é hora, Fernanda.
- Então faz um favor, pegue esta planilha onde você projeta cada passo da sua vida, suas roupas, sua escova de dentes e saia do meu lado de uma vez por todas!
A sessão acabou. Acertaram o valor e agendaram outro horário, embora ambos insistissem que não haveria próxima vez. Saíram porta afora, seguindo caminhos distintos.
Fábio ainda olhou para trás, a tempo de ver Fernanda firme em sua opinião, caminhando decidida. Era final do dia. E ela virou de volta para ele. 
No mês seguinte, estava grávida. 
Para Dra. Clarissa, voltaram apenas para explicar:
- Não era hora. Segundo minha projeção, seria para daqui a uns três anos. E sou muito racional, extremamente firme em meus argumentos.
- E o que o fez mudar de idéia?
- Os olhos dela. Ele brilham quando cai o sol.














quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O planeta sem margarina

Estes dias, uma conhecida cronista de Porto Alegre escreveu um texto sobre falta de educação e citou em sua extensa lista, pais cujas crianças fazem birra em locais públicos e mães que deixam os filhos brincarem com tablets em restaurantes ("não querido, tablet não.... Estamos num comercial de margarina, então vamos fazer uma refeição de duas horas e conversar. Isso, sorrindo..."). Enquanto lia, quase engasguei com o suco, mas como meu filho tropeçou em seguida, não tive tempo hábil para tal. 
Uma das mudanças mais interessantes que a maternidade proporciona é a intimidade súbita entre mães: você sentada numa mesa de restaurante, quando chega outra mulher com duas crianças a tiracolo, uma berrando, a outra pedindo para fazer xixi e imediatamente vocês se reconhecem sorrindo mutuamente, como que dizendo "Olá conterrânea planetária". Sim, porque se os homens são de Marte e as mulheres de Vênus, as mães definitivamente compõem uma subclasse distinta, ocupando uma extensa região do planeta feminino ou até, outro astro todinho delas.
E uma vez inseridas na categoria, ou advindas da tal região extraterrestre, passam a trocam intimidades como se fossem amigas de infância:
- Acho que a pega do meu bebê não esta correta. Ui. Arde quando ele mama.
- Peraí, eu te ajudo. Isso, senta mais para lá, deixa o seio nesta posição. Ahã, posso mexer? OK, isso. Viu?
- Nossa, ficou perfeito.
E assim, numa fase em que você considera que 'O que esperar quando se está esperando' mereceria o Nobel de literatura, que a única política interessante é a de trocas e devoluções da loja infantil mais próxima e na sua última viagem mal notou a paisagem, mas tirou quatrocentas e vinte fotos do seu filho, vocês tem umas às outras, já que para o resto da sociedade passaram a ser aquela mulher que 'Afe, não fala de outra coisa'.
- Vocês viram a situação da Ucrânia?
- Ahã.
- Hum... Não muito.
- Gente, faz oito dias que o Fabinho acorda de três em três horas a noite toda.
- Não acredito, já tentou o Nana Nenê? Tem gente que detesta mas em casa funcionou.
- Eu prefiro a técnica da Encantadora de Bebês. Quando ele chorar, entra no quarto...
O mercado já notou esta explosão de hormônios e necessidade de agregação, passando a oferecer serviços voltados para o público materno:
- Esta hidrodinástica é ótima, a gravidez me deixa com retenção de líquidos
- Isso que você ainda está no segundo trimestre. Eu mal ando. Sexo então, nem pensar.
- Aliás, prazer, Anabela
- Prazer, Juliana
Então, passada a fúria da carapuça que vestiu com o tal texto, resolvi relaxar. Afinal, cada um que converse com seus iguais. Quem sabe um dia, conterrâneas, também não sentemos numa tarde silenciosa, jogando conversa fora, discutindo política, Nobel de literatura e viagens culturais? E quando bater a fome:
- Garçom, me traz uma porção de margarina?

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Varal bege

Da janela da área de serviço, conseguia enxergar o que se passava no apartamento dos vizinhos. Era a parte lateral do pequeno edifício e onde encontravam-se os estendedores de roupas do 101 ao 804. 
Sabia, por exemplo, que a vizinha do 502 era artista, pelos aventais manchados de tinta. O casal do 404 era metódico, combinavam sempre os pijamas e a roupa de cama. O estendedor na janela do senhor do 704, quase sempre vazia, denunciava que ele devia mandar as roupas para uma lavanderia ou simplesmente, a esta altura da vida, tinha desistido de cheirar a sabão em pó. A vizinha ruiva do 303 - intrigante - lavava apenas lingerie. A família do 201 tinha acabado de aumentar. O rapaz do 703 terminara um relacionamento. O extravagante músico do 803 misturava roupas coloridas às brancas na máquina de lavar. A senhora de meia idade do 202 aumentara consideravelmente o tamanho dos seios. Os recém casados do 401 eram fãs de chantilly. E Ana imaginava se os vizinhos também conseguiam desvendar pequenos detalhes da vida dela analisando seu varal, monótono, coberto de roupas de tom bege.
O curioso, no entanto, é que apesar da intimidade exposta no edifício Saint Tropez, os vizinhos cumprimentavam-se apenas com um aceno de cabeça e no máximo um "Esfriou, né?" ao cruzarem-se nos corredores, no elevador ou na garagem. Sabiam a cor da roupa íntima que o outro usava, detalhes de sua vida privada, de sua situação estomacal, mas não ousavam cruzar a barreira do manual politicamente correto da impessoal vida em cidade grande:
- Olá 
- Boa noite
- Tchau
- Até mais
Então chegou o dia da reunião de condomínio, que ocorria a cada seis meses sempre convocada pelo síndico, o senhor de poucas roupas no varal. Ana desceu de roupa bege e um rabo de cavalo, exatamente como seu varal sugeriria a um vizinho mais atento. 
Foi lida a pauta do encontro e, após definirem repintar o teto azul do hall, podar o Ficus da entrada e escolher um local apropriado para o carrinho de compras, abriram o espaço para assuntos gerais. O rapaz do 703 começou:
- Temos vizinhos que não respeitam o horário de silêncio...
- Ih começou!
- Sim, comecei. Gosto de dormir cedo.
- Cara, é minha profissão. Pior você, que não recolhe as necessidades de seu cão na calçada.
A senhora dos seios grandes entrou no debate:
- Não critiquem os animais, não critiquem os animais.
- Ah é, minha senhora? E seu papagaio que imita o som de assoar o nariz?
- Imita do vizinho de cima.
- Eu?
- Sim. Poderia ser mais silencioso, não?
- Minhas intimidades não dizem respeito a você.
E os ânimos começaram a se exaltar. Levantaram-se, xingaram gerações anteriores e futuras, apontaram o dedo para imperfeições diversas. Ana permanecia observando. Até que pisaram em seu calo:
- Culpa da vizinha bege!
- Eu?
- Sim. Sua cantoria no banheiro é absolutamente irritante.
- Irritante é olhar suas calcinhas minúsculas e multicoloridas dia após dia!
- Invejosa!
- Exibida!
No instante seguinte, estavam rolando pelo chão, puxando os cabelos uma da outra. A vizinha da lingerie teve um apoio maciço do público masculino, o que deixou a noiva do 401 visivelmente alterada (provavelmente esta noite não teria chantilly). O síndico pediu a palavra:
- Agradeço a presença de todos, mas já são dez da noite. Assuntos pendentes serão tratados na próxima reunião e assim, dou por encerrado este encontro.
Todos levantaram-se, pegaram seus pertences e saíram porta afora. Dividiram o corredor e o elevador como desconhecidos, com rostos plácidos e seguindo o protocolo politicamente correto da vida em cidade grande, despediram-se:
- Boa noite
- Tchau
Ana entrou em seu apartamento e foi direto recolher as roupas do varal. 'Vizinha bege' era demais, a sirigaita do 303 que aguardasse a próxima reunião. E até mais.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Cada coisa em seu lugar

Foi só entrarem no carro:
- Você notou?
- Notei o que?
- Francisco, você me chamou onze vezes durante o aniversário. "Rose, o Rafa caiu", "Rose, o Rafa quer fazer xixi", "Rose, o Rafa pegou o brigadeiro do chão".  Custava ter interrompido sua conversa com os outros homens e me ajudado? É sempre assim.
- Rose, eu mal te chamei. Você passou a festa a postos, pronta para qualquer intercorrência
- Claro, que outra alternativa eu tenho?
- Como assim?
- Passo a vida cuidando, não tenho mais tempo algum para mim. Quando estou ausente, o mundo desaba.
- Ah é? Pois vamos ver.
Francisco - indignado, ferido, receoso, em pânico - sugeriu que ela fizesse um longo programa no sábado seguinte "Se o problema é esse, saia, sem medo de ser feliz". 
Rose - aliviada, desafiadora, receosa, em pânico - acenou concordando.
Mesmo com o pesar de utilizar o filho como cobaia para a aplicação prática do instinto paterno de Francisco, Rose agendou, pé, mão, corte, luzes, massagem, máscara facial, almoço, chá da tarde, cinema, happy hoje, sarau. Divertiu-se de forma inusitada e voltou para casa levemente bêbada, cantarolando a música da borboletinha.
Ao colocar a chave na porta, inspirou, antecipando o triunfo. Três, dois, um. Silêncio. Como ninguém vinha recebê-la, entrou a procura da família. Almofadas no chão e poltronas do avesso anunciavam a tragédia.
- Olá?
- Oi amor - Francisco apareceu com Rafa no colo, corado e sorridente
Uma onda de alívio percorreu seu corpo. Sobreviveram.
- Como foi?
- Tudo tranquilo. Pedimos pizza, brincamos...
E Francisco descreveu um dia comum. Sem loucuras extraordinárias, apesar de estarem descabelados. Sem nutrientes, apesar de estarem rechonchudos. Sem agasalho, apesar da temperatura de outono. De fato Rose surpreendeu-se com o sucesso da operação. Independente da falta de ordem, da sopinha de legumes e da roupa apropriada, lá estavam eles. Bem. Felizes. Exaustos. Sorridentes. Independentes. Finalmente ela poderia seguir adiante, sem ser essencial para o funcionamento do lar. Finalmente! Ahã. Ótimo. Tá. E agora?
- Ah, Francisco! Fraldas abertas no lixo da pia? Francamente. Entende o que eu vivo dizendo?



quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Porque sim

Já deve ter acontecido com você: o súbito momento em que percebe, para o bem do seu microcosmo, fingir. Fingir achar uma piada engraçada, fingir que seu emprego te completa, fingir não sentir falta do descompromisso, fingir se identificar com aquele grupo de amigos, fingir amar outra pessoa. Fingir amar. Parece forte, mas além da conotação catastrófica, engloba situações em que você mal se dá conta que entrou no módulo automático de adequação protocolar ou que a mistura ímpeto-hormonal gera uma explosão finita facilmente confundida com amor.
Aconteceu comigo há alguns anos, quando acordei com o barulho do mar, numa cama de casal desfeita.
- Onde estou?
- Em Maresias
- Isso eu sei
- Foi você quem perguntou
O que eu queria mesmo, era saber como aquela pessoa - que não era eu - tinha ido parar ali
- Viajamos durante a noite. Pronta para sair?
- Sair? Hoje é sábado, são sete horas da manhã...
- E as ondas estão perfeitas
Céus! Eu nunca gostei de praia. A paisagem é linda e tal, mas tenho aflição do barulho que surge da fricção dos pés na areia e a água do mar deixa o corpo grudento. Dois dias por ano sentindo a brisa oceânica e considero a meta como cumprida, pelo bem da vitamina D. E agora lá estava eu, num superávit impensável, passando mais de cem dias por ano em paraísos litorâneos, acordando antes do meio dia aos finais de semana e entendendo sobre métrica de ondas.
- Com o perdão do trocadilho, esta não é minha praia
- Começou...
- Está vendo a cor da minha pele? De tão branca, é possível acompanhar ao vivo o percurso completo da artéria aorta
- Ótimo, bronzeie-se
- Eu não quero me bronzear. Eu quero passar um final de semana no campo, deitada numa rede, jantando calorias ao invés de complementos nutricionais
- Vamos para a praia. Você pode fica deitada na areia lendo seus livros, sem sociabilizar com as outras mulheres, como, aliás, sempre faz
- Eu gostaria de sociabilizar com os meus amigos, que estão a kilometros de distância, conversando sobre qualquer outro assunto que não inclua a palavra mar
- Eu achei que você adorasse essa vibe
- Achou? Ou nunca se importou?
- O que você quer que eu faça?
- Faça parte da minha vida
- Eu não pedi para você abdicar dela
Arrumei a cama, a mala e o rosto, inchado como o de quem chora no cinema, por uma história que não lhe pertence. Mais uns dias e arquivei a história numa caixa de sapatos. 
Reprogramei meu roteiro. 
Acabou. Por tudo. Porque sim.
E embora muitos insistam que esta não é uma resposta, quando se decide acordar, ela pode ser a melhor delas. 



quinta-feira, 31 de julho de 2014

Patotas

Clara estava animada com aquele convite. Reencontraria a turma da faculdade após dez anos e finalmente conversaria sobre assuntos interessantes entre pessoas que pensavam como ela.
Nos últimos tempos, seus amigos passaram a ser os pais dos amigos de seus filhos, pessoas cujas afinidades resumiam-se a dissertar sobre a didática da professora, a linha pedagógica do colégio, a malignidade do glúten e a mãe do Fabio que não tinha vergonha na cara. Era isso: ela pensava em seus filhos vinte e quatro horas por dia e sua vida social também resumia-se a manifestos maternos.
Com a premissa de comemorar as bodas da formatura, finalmente seria despertada a Clara que levantava bandeiras, que devorava livros em cuja capa não constavam barrigas de nove meses, que discorria sobre assuntos culturais diversos e que cantarolava músicas da Adriana Calcanhoto ao invés da Partimpim. Sabia que, da antiga turma, poucos sequer estavam casados e certamente mantinham o ar reacionário de outrora, tempo em que ela também avaliava seriamente a possibilidade de mudar o mundo. Até conhecer o Rodrigo, casar, engravidar, fazer cursos de papinhas orgânicas e mudar o seu mundo.
No dia do encontro, Rodrigo ficara encarregado de cuidar das crianças e, ainda beliscando-se para checar a veracidade do momento, Clara bateu a porta de casa e saiu. Voltou horas depois, um pouco antes da meia-noite.
- Já?
- Sim. Acredita que hoje em dia tem trânsito neste horário?
- Como foi o encontro?
- Demais!
E discorreu sobre a emoção de rever antigos amigos, sobre como pouco haviam mudado. Discutiram sobre os tempos atuais, relacionaram Maquiavel com Simone de Beauvoir, Baudelaire com Valeska Popozuda e pré-sal com festa rave. Um pouco depois do início da animada conversa, chegou a Julia, pedindo desculpas pelo atraso e já dando as boas novas: estava grávida. Todos ficaram felizes, brindaram com seus copos de cachaça enquanto a gestante pedia uma água sem gás. Clara mal pôde conter a emoção. Chamou Julia para sentar a seu lado e iniciaram uma animada conversa sobre enjôos matinais, planos de parto e peças indispensáveis no enxoval. Como a conversa dos demais estava muito alta, elas logo mudaram-se para outra mesa, na ala de não fumantes. Ainda pediram um café descafeinado antes de despedirem-se do resto do pessoal que àquela altura, falava sobre sei lá o quê. Na saída, combinaram de encontrarem-se novamente. Tinham muitos assuntos em comum e de fato, Clara ainda precisava falar com ela sobre sobre linhas pedagógicas, a malignidade do glúten e, quem sabe, apresentá-la para as mães dos amigos de seus filhos.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Ideologia: aplicação prática

"Se beber, não dirija"
(Sabedoria popular)

- Alguém escutou a campainha?
O papo estava tão animado, que não sabiam ao certo se o som era real ou fruto da imaginação, após alguns - vários - goles de espumante. Eram três casais que organizavam encontros sempre divertidos. Pediam pizza, bebiam, gargalhavam. Falavam sobre as ações, a novela e abobrinhas em geral, antes do papo das mulheres invariavelmente recair sobre o trio casa-filhos-empregada. Todos casados havia mais de uma década, tinham uma relação agradável desde os tempos de namoro, quando os meninos eram colegas na faculdade de engenharia mecânica. Primeiro a Renata conheceu o Rubens, depois a Paula encantou-se pelo Roger e por último, a Cristina conquistou o Julio. Pena mesmo era o Marco, que fora passar uma temporada na Europa e acabara ficando do lado de lá do oceano. Justamente por isso, esta noite seria diferente: finalmente o quarteto estaria completo e as esposas conheceriam o famoso dissidente da turma.
- Acho que tocou sim
- Deve ser o Marcão
Julio, o anfitrião da vez, foi abrir a porta
...
- Fala cara!
E todos levantarem-se. A comoção foi geral. Não se viam desde... nossa, uns quinze anos. Abraçaram-se, apresentaram a Rê, a Pá e a Cris. 
- Senta. Que saudades. O tempo não passou para você!
- Passou, passou tão rápido que nem percebi
Marco de fato parecia não ter sentido a passagem do tempo. Sua pele tenaz e a barba por fazer conferiam a ele uma aparência bem jovem. Demais até.
- E o que você tem feito?
- Passei os últimos cinco anos viajando pelo continente africano, defendendo algumas causas importantes...
E o recém-chegado passou a hora seguinte discorrendo sobre a guerra, a miséria e as campanhas humanitárias. E - fato intrigante - sequer escutaram a voz das mulheres.
Na realidade, Paula estava corada, Renata não sentia as pernas e Cristina ainda não tinha conseguido piscar os olhos. Quando a pizza chegou, seguiram direto para a cozinha onde, pela primeira vez na última hora, trocaram algumas palavras:
- Que homem é esse?
- Que homem!
- Uau!
Retocaram o gloss, arrumaram os cabelos, encolheram a barriga e voltaram para a sala.
No encontro seguinte, insistiram para que convidassem o Marco. Afinal, ele ainda tinha muito a discorrer. E as noites passaram a ser cada vez mais elaboradas. A pizza virou bruscheta de berinjela, o gloss virou sapato de tecido eco-sustentável e o casa-filhos-empregada, utopia-humanitária-hypster. O novo anfitrião, cada vez mais à vontade, ignorava todos o protocolos da classe média. 
Na segurança da cozinha, as mulheres cada vez mais apaixonadas
- Não apaixonadas, encantadas
- Não encantadas, intrigadas
E discorriam sobre todo o tipo de papo normalmente reservado a banheiros femininos. Não podiam furtar-se de trair em pensamento, imaginando a vida ao lado daquele ser de charme intelecto-neandertal, comendo tofu no café da manhã, amando loucamente segundo os preceitos do tantra e discutindo política em mesas de botecos, dentre outros pormenores fantasiosos.
Uma noite, Marco anunciou que tratraria sua nova namorada, Luciclei.
- Luciclei?
- Ahã. O que tem? Perguntou Julio
- Não, nada.
Quando abriram a porta, Luciclei apareceu, de mini vestido vermelho, cabelo loiro platinado pela cintura e risada extravagante. Durante a noite, discorreu sobre a novela, a nova namorada do Rodrigo Santoro e como evitar rasgos em meia calças. Todos apenas escutavam.
Na realidade, Julio estava corado, Rubens não sentia as pernas, Roger ainda não tinha conseguido piscar os olhos e Marco não desviava o olhar do decote vermelho. Foram apenas interrompidos com um bate-papo vindo diretamente da cozinha. Achavam ter escutado "logo o Marco".
- Que?
- Nada, é que o risoto de pupunha queimou
- Queimou?
Foi quando Cristina reapareceu, já de pantufas:
- Pois é. Todos comem pizza de catupiry?

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Life is...

Sou Lennon-maníaca, por mais pop que isso possa parecer.
Passei minha adolescência ao som dos Beatles, com pôsteres de décadas anteriores à minha na parede e achando que Imagine era a obra-prima da indústria musical. Minha referência ideológica passava certamente por John e a Yoko protestando na cama por uma semana, pura utopia de paz e amor.
Daí eu cresci, casei, mudei, paguei contas, tive filhos e a vida passou a ser mais pragmática. De Imagine, hoje, curto apenas a melodia e uma semana na cama, passou a ser utopia de férias incríveis. 
Mas ainda tem uma estrofe que me emociona, daquelas que a gente canta bem alto, por pura admiração: "Life is what happens to you while you are busy making other plans". De fato. A vida é o que acontece enquanto estamos ocupados traçando outros planos.
Tocante. Eu almoço pensando que o queijo ralado acabou e só irei ao supermercado depois de amanhã. Olho as crianças correndo pelo jardim lembrando que é tempo de adubar os hibiscos. Falo ao telefone rascunhando possibilidades na agenda da semana e assisto televisão pensando na morte da bezerra, da vaca e da égua. Sempre fazendo outros planos.
E a vida passa assim.
Seria tocante continuar o texto com promessas de uma nova vida e frases prontas do tipo 'respire fundo, sinta a brisa e use protetor solar', mas não. Simplesmente vou admitir que o privilégio de viver com a cabeça livre, leve e solta é para uns poucos sortudos. Assim como filhos que dormem a noite inteira antes de completar seis meses e irmãos que jamais gritaram 'nunca mais fala comigo na sua vida' um para o outro. A gente escuta um caso aqui, outro lá. Inclusive, ontem soube de um amigo do primo da minha cunhada que tem um bebê que é um anjo: mama, dorme e brinca sozinho por mais de vinte minutos.
Mas a vida real, minha e das pessoas que conheço - de carne e osso - é cheia de atropelos. De felicidade entremeada por ansiedade. Satisfação e correria. Alegria e loucura.
Eu sou Lennon-maníaca, mas fico com a beleza dos seus versos e uma taça de vinho toda noite. Para relaxar a cabeça de tantos pensamentos que não respeitam ordem cronológica. E me redimo: nunca passei uma semana cama e meus filhos só dormiram a noite inteira depois dos seis meses. Entre outras peculiaridades da vida real.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

De 2014 para 1968

Queridas mulheres,
Amanhã vocês participarão de um concurso de miss e, como forma de protesto à situação da mulher, planejam queimar soutiens. Por isso escrevo esta carta, direto do futuro, para contar:
O tiro saiu pela culatra!
Pois é. Sei que a intenção de vocês é das melhores, que é insustentável nossa situação oprimida numa sociedade machista e tal. De fato, conquistamos direitos, postos de trabalho e nem sempre somos chamadas de histéricas quando opinamos de forma contundente. Sim, opinamos e isso é um ganho e tanto.
Mas mesmo com toda esta transformação na sociedade, acreditem: nossas casas continuam sujando, pastas de dentes ainda não proliferam por osmose nos armários, filhos não se criam sozinhos e maridos pedem canja quando estão doentes. Mas agora, nós temos que trabalhar para complementar a renda familiar. Não somos artistas, vanguardistas ou idealistas. Somos proletárias. Batemos cartão, temos metas e almoçamos com ticket refeição. Enquanto isso, lá em casa, a roupa acumula, a funcionária não apareceu, ainda bem que sua mãe tirou o dia para cuidar do bebê, a pasta de dentes acabou e terá pizza congelada para o jantar. Culpa aqui e culpa lá. Freud jamais poderia sonhar com tamanha popularidade no século XXI.
Vocês devem estar se perguntando: e os homens? Ajudam mais, mudaram sim. Mas ainda detestam trocar fraldas, não tem glândulas mamárias e apesar de terem virado gourmets, raramente sabem que para o arroz ficar soltinho, precisa ser cozido em fogo baixo. Fora que, conviver com uma parceira poderosa ao lado, não é coisa pra qualquer macho.
Entendem? Está tudo atrapalhado. Claro que existem mulheres felizes com esta situação toda, mas, se vocês não queimarem os soutiens, elas serão a vanguarda de nossa classe. Um título interessante. Quanto ao resto de nós, deixem-nos trocar receitas de ovo poche, levar nossos filhos na escola e fazer artesanato. Sem peso na consciência. Se der, trabalharemos meio período. Um plus. E usaremos o dinheiro extra para algo que não seja bancar babá, foguista, enfermeira e motorista.
Sei, sei, tem a questão dos padrões de beleza impostos. Então deixa eu contar: vocês terão descendentes intitulando-se mulheres-morango, melancia e jaca. Se o nome não for auto explicativo, eu esclareço: deu mesmo tudo errado! Até nós, mais básicas e pós-graduadas sabemos que 250ml de silicone ficam super proporcionais, que o blush da MAC é incrível e todos as demais artimanhas sensuais.
É século XXI, mas homens ainda gostam de bunda, mulheres ainda não gostam de dividir a conta e crianças ainda passam a primeira infância gritando do banheiro "Manhê, acabei!".
Portanto, amanhã, peço singelamente: desfilem. Mandem beijos. Ou fujam do padrão - individualmente, sem rebeldia - desde que fiquem graciosas para a história. Porque nós, do futuro, não estamos dando conta de tudo-ao-mesmo-tempo-agora.


quarta-feira, 16 de julho de 2014

Idade: vide bula

Vinte anos. Pode usar mini saia. Decote descuidado é charme. Pode opinar, mas não espere ser levada a sério. Flerte à vontade. Não ceda à primeira cantada. E sem mãos no primeiro encontro. Pode gostar de vampiros. Pode viajar com o namorado (mas deixe o celular ligado). Pode dirigir à noite. Pode ficar doente. Pode beber, você já é maior de idade.
Trinta e cinco anos. Mini saia nesta idade? Amamentar em público é polêmico. Pode opinar. O livro da Encantadora de Bebês é bárbaro. Cinco malas para passar o final de semana fora. Tem café descafeinado? Não pode ficar doente (nem dá tempo). Pode conversar sobre política, mas o papo vai acabar em 'casa e empregada'. Beber é mau exemplo, tem suquinho na geladeira.
Cinquenta anos. Mini saia é falta de simancol. Decote abusado também. Deve opinar. Pode escolher o canal de televisão. E o filme no cinema. Flerte sem ser vulgar. Ceda à primeira cantada. Sem ser vulgar. Pode viajar com o namorado (e desligar o celular). Não pegue no pé de ninguém. Mas não seja ausente. Pode beber se a bula do remédio permitir.
- Que saco!
- É...
- Essas regras. Deveria ao menos haver uma idade em que pudesse tudo
- Relaxe
- Não da pra relaxar
- Você bebeu demais?
- Talvez
- Vamos para casa
- É, acho que não tenho mais idade...






terça-feira, 15 de julho de 2014

Forma, conteúdo e rúculas

Ontem escolhi um livro entre as gôndolas do Zaffari. Tuppewares, papel alumínio, livros. Livros? Livros!
A capa, o título e a autora despertaram minha atenção, mesmo expostos sem charme algum sob luz branca, em estante de alumínio, com 'My name is Luca' tocando ao fundo.
A princípio, me senti herege, mas logo desapeguei da culpa, afinal, não estava comprando Paulo Coelho. Na verdade, minha classificação estava para algo entre 'Dona Maricota' e 'Nossa, a vida anda corrida'. Foi uma compra por impulso. Mas se dentistas, vez ou outra, dormem sem passar fio dental, eu também tenho o direito de ser manipulada por meus colegas do marketing.
Não li o prólogo ou a dedicatória. Não folheei. Coloquei no carrinho e segui em direção às massas. Esqueci.
Fui lembrar dele no final da tarde, perdido no saco plástico, em meios a rúculas e tomates. A funcionária de casa, que ajudava a desempacotar as compras, olhou com estranhamento.
- Você é vingativa?
- Não eu, a Claudia Tajes
- Ah...
Sorri com simpatia, tentando não macular minha imagem em tempos de PEC.
Mais tarde, parei em meio ao caos, ignorando as crianças aos berros argumentando que alguém havia puxado o cabelo de alguém e o cachorro que mordia a sola do meu sapato.
Li o prólogo, a dedicatória e folheei. Teria escolhido aquela leitura mesmo sob meia luz e estante de madeira.
Fiquei feliz e passei a adorar a idéia. Até agora, minhas compras por impulso resumiam-se a chicletes, pilhas e um ventilador descartável da Hello Kitty ("Ah mãe, compra, por favor, eu juro que nunca mais te peço nada").
O livro continua cheirando a rúcula, mas quem se importa? Afinal, a Dona Maricota tem carisma e vida anda mesmo corrida.



domingo, 13 de julho de 2014

Protocolando

- De novo?
- Por que?
- Cansa. Todo sábado, almoço com seus pais. Domingo, sua corrida matinal...
- Mas...
- Fora o futebol no final de tarde e a pizza pra fechar a semana 
- Não sabia que incomodava tanto
- Claro que sim. De vez em quando, vá lá, mas sempre?
- O que você gostaria de fazer?
- Qualquer coisa, menos isso
- Qualquer?
- Eu ansiava por uma vida cheia de emoções. Acordar com um café da manhã surpresa na cama, viagens românticas pela serra, serenatas de amor...
- Mas eu até te carreguei nos braços em nossa noite de núpcias
- Isso é protocolo
- Achei que fosse romantismo
- Eu queria um roteiro a la Woody Allen, uma temporada a dois em Nova York ou até, ser surpreendida com um final de semana em Barcelona
- Ah, claro. Desejos modestos...
- Tá, tá, exagerei. Quis dizer que falta novidade, sabe? 
- Poxa
- Sempre esse arrozinho com feijão
- E não é sua comida preferida?
- Enjoei. Quero frango com polenta
- Ufa! Achei que fosse caviar
- É sério Marco Antônio, é sério...
- Amorzinho, eu te amo
- Então, pelo bem do nosso casamento, chega de rotina
- Ahã
- De ter hora marcada para tudo
- Pode deixar
- Me surpreenda!
- Vamos hoje assistir aquele filme, que você tanto queria?
- Hum, estou gostando
- E jantar à luz de velas, no restaurante italiano do centro?
- Vamos!
- Vou tirar esta roupa suada e tomar um banho...
- Mas...
- O que?
- Não demora. Preciso voltar para casa até as nove, não quero perder a novela e você sabe, se eu dormir depois das onze, acordo com dor de cabeça 

terça-feira, 8 de julho de 2014

Papéis de carta

Eu tinha sete anos, era meiga, comportada e trocava papéis de carta na hora do recreio. Ele tinha a mesma idade, mas colecionava advertências no colégio - a versão infantil do tradicional cafajeste.
Até hoje não tenho certeza sobre qual dos atrativos o fez abdicar da vida de pular muros e falar palavrões em sala de aula: se foi meu jeito doce, o penteado chanel com franja ou a fantasia que meus pais me faziam usar em todos os eventos carnavalescos da infância:
- Eu estou de Branca de Neve. E você?
- De Melindrosa
- O que é isso?
- Não sei
A tal fantasia, feita em caráter exclusivo e sob medida na fábrica de lingerie do meu pai, consistia num corpete de renda com enchimento no soutien, adornado por penacho na cabeça, meia calça arrastão e cinta liga (sim, cinta liga). Para completar a posterior necessidade de terapia, minha mãe pedia que eu fizesse pose de Can Can para registrar tais momentos.
Então, certa vez, saindo da aula após uma chamada oral de tabuada, um amigo veio entregar o papel de carta brilhante dobrado. Detalhe: o papel de carta brilhante está para os anos oitenta assim como a figurinha do Neymar no álbum da Copa está para os tempos atuais.
"Quer namorar comigo?", em letras pré-alfabetizadas.
Querer eu não queria e como sempre tive facilidade em impor minhas opiniões:
- Responde que sim
A partir do dia seguinte, não fazia mais castelos de areia ou pulava amarelinha na hora do recreio. Eu andava de mãos dadas. Na educação física, ninguém podia atirar a bola em mim durante o jogo de queimada e na aula, trocávamos olhares. Longos. Infinitos. O negócio estava sério, apesar de um pouco chato.
Algum tempo passou e certo de seus sentimentos, outro papel de carta dobrado.
"Quer casar comigo?"
Bom, não deve ser tão difícil assim. Apesar dos adultos viverem dizendo que a vida era complexa, eles não precisavam ir para a escola, não ficavam ansiosos se seriam os últimos escolhidos para o time de pique bandeira e nem tinham que decorar a tabuada. Estava pronta para este mundo. Além do mais, provavelmente poderia continuar morando com a minha mãe.
- Pode ser
No recreio posterior, tirei minha saia de tule e camiseta branca da mochila para, sob olhar de alguns amigos, nos casamos antes do sinal tocar. Teve rabino mirim, buquê e copo de plástico quebrado. Até ganhei uma caixinha de música e um perfume de alfazema. Agora era pra valer, ai de quem encostasse em mim na queimada.
O tempo passou. 
Até que dois dias depois, cansada da rotina de mãos dadas e invejando as brincadeiras das meninas, chamei o amigo de sempre:
- Diz pra ele que quero me separar
Ele foi. E voltou com um papel de carta. Dobrado.
Não abri. Tinha medo de que ele estivesse dando um aviso "vou te pegar na saída". Fui descobrir a mensagem alguns dias depois, na sala da diretora, com minha mãe explicando que por causa da carta eu estava com medo de ir para a escola.
"Mesmo você não me querendo mais, vou te amar para sempre". Um coração com uma lágrima dentro.
Uma semana depois, ele estava casado com outra menina. E eu voltei à minha rotina de trocar papéis de cartas:
- Posso. Posso. Mais ou menos. Não posso. Posso.
- Voce pode este brilhante?
- Ahã
- Uau!
E eu, com perfume de alfazema, achando graça na ingenuidade das meninas que ainda gostavam de papéis de carta sem declarações de amor.


sábado, 28 de junho de 2014

Sobre opiniões e papagaios

Mario chegava em casa por volta das oito, sempre saudado por Ana e festejado pelas crianças. A esposa temperava o jantar, escutando o trio na sala a cantar. Comiam, conversavam, discutiam. Ana tirava a mesa, Mario entrava no banho, crianças direto para a cama. Beijos de boa-noite, pés juntos sob as cobertas, silêncio. Dormiam felizes.
- Não quero me intrometer, mas...
- O que?
- Vivemos numa época em que não faz sentido a mulher cuidar sozinha das tarefas do lar. Mario bem que poderia ajudá-la com a louça ao final do dia
- É, por uma lado...
Mario chegava em casa por volta das oito, sempre saudado por Ana e festejado pelas crianças. A esposa temperava o jantar, escutando o trio na sala a cantar. Comiam, conversavam, discutiam. Ana tirava a mesa, Mario ajudava. Mais tarde, entrava no banho. Crianças iam já bem cansadas para a cama. Beijos de boa-noite, os pés de Ana estavam sempre gelados, silêncio. Dormiam.
- Não é por nada
- O que?
- Você tempera o jantar enquanto o resto da família fica na sala a cantar?
- Tem razão...
Mario chegava em casa por volta das oito, sempre saudado por Ana e festejado pelas crianças. Mario temperava o jantar, Ana arrumava a sala, as crianças assistiam televisão. Comiam, conversavam, discutiam. Ana tirava a mesa, Mario ajudava. Mais tarde, entrava no banho. Crianças entediadas choravam ao irem para a cama. Beijos de boa-noite,  os pés de Ana estavam sempre gelados o que, segundo ela, lhe causava dores de cabeça. Silêncio. Mario tinha insônia, o resto da casa dormia.
- Estou há tempos para lhe dizer
- O que?
 - A família tem reclamado de vocês, nem ligam para saber dos demais. Tia Maria, por exemplo, anda atacada da artrite. Ruth então, vive perguntando pelas crianças 
- Puxa...
Mario chegava em casa por volta das oito, Ana lhe passava a ligação, era tia Maria. As crianças não gostavam falar ao telefone, onde já se viu? Alguém esquentava a lasanha congelada, Mario preferia não jantar. Ligavam para Ruth. Crianças direto para a cama. Ana deitava em silêncio, Mario já dormia sob o efeito de remédios. 
- O que tem seus filhos?
- Por que?
- Nunca querem falar no telefone
Mario chegava em casa por volta das oito, Ana acenava com a cabeça. As crianças falavam por telefone com o novo papagaio da Ruth, comiam um sanduíche. Silêncio. Cada um dormia em seu quarto.
- Vocês estão em crise?
- Como você sabe?
- O papagaio da Ruth
- Ah...
- Posso dar uma sugestão?
- Ahã
- Passem mais tempo juntos, criem a rotina de vocês
- Até que é uma boa idéia 





quinta-feira, 26 de junho de 2014

Camembert verde e amarelo

A partir de hoje, sou francesa. Não quero que meus filhos façam manhã e pretendo terminar as refeições com queijos.
Antes de entrar na maternidade, olhava para aquelas crianças berrando no supermercado por causa de um iogurte ou jogando queijo ralado no suco de laranja em pleno restaurante, diante de pais condescendentes com olheiras e pensava: "Ah, quando eu for mãe...".
Pronto. Sou mãe. E para a surpresa das minhas convicções, meus filhos já protagonizaram caos em supermercados,  jogaram farinha no chá gelado, enquanto eu - que sim educo, imponho limites e criei as 'regras da casa by Super Nanny' - estimulava:
- Isso, joga um pouquinho mais de farinha e depois ainda tem o sal. Daqui a pouco eu acabo de almoçar e podemos sair correndo.
Já me flagrei pensando em qual momento meus planos foram por água abaixo e finalmente, um sucesso editorial me trouxe a resposta: é tudo culpa da educação brasileira. Portanto, além de termos em nossa herança cultural a caipiroska de seriguela, somos exageradamente protetoras e entramos no mundo de nossos filhos ao invés de trazê-los ao nosso. Exótico. 
Acabou o xixi? Peraí que estou indo arrumar sua cueca
Não gosta de tomate? Eu te faço macarrão com bifinho. 
Quer brincar de princesa? Vamos lá.
Lutar como monstro? Vou te pegar!
Descalço não, aqui estão a meia e o sapato. Dá o pezinho
Quer fazer uma tatuagem de canetinha na minha mão? Pequena, tá?
Programação do final de semana? Quatro festas infantis
Vamos comer fora? Naquele restaurante com recreação e batata frita
Acontece que, além do papel de super mãe, também gosto de sentar no sofá, com os pés para cima e os olhos fechados, adoro comida indiana e filmes não indicados para menores de doze anos. Só que com um detalhe: sem culpa.
Desta forma e com a solução para o equilíbrio pronta, simples e debaixo do meu nariz, resolvi adotar a técnica:
- Mãe...
- Oui
- O que tem de sobremesa
- Camembert 
- Ah, não pode ser danoninho?
- No
- Por favor....
- Está bem vai, é petit suisse. Traz que eu te dou na boca




terça-feira, 24 de junho de 2014

Eu não te pertenço

No dia do nosso casamento, eu disse que pertencia a você, assim como você, pertencia a mim. Em casamentos judaicos, essa é a prédica no momento da troca de alianças e naquele instante, eu olhei nos seus olhos. Ali, eu te escolhi.
Seria perfeito, se não houvesse um porém: você não pertence a mim. E da mesma forma, eu não pertenço a você. Eu te escolhi.
Quando o vi pela a primeira vez, meu coração afundou, minha perna tremeu e eu te escolhi. Naquela noite em que não ouvimos os fogos de artifício, eu te escolhi. Quando chorei incontáveis semanas por sua ausência, eu te escolhi. Quando eu estava com outra pessoa, pensando em você, eu te escolhi. Quando sem querer perder mais tempo, liguei te convidando para sair, você lembra, né? Eu te escolhi.
Eu não tinha vinte anos, assistia Dawson's Creek, tinha pijama com cara de urso e uma insegurança do tamanho do mundo. E você me abraçou. Por isso, eu te escolhi. Você rodou o mundo, dormiu no chão na Índia e mochilou até o Himalaia. Eu queria ter sido hippie, mas nunca fui. Por admiração, te escolhi. 
Com você, mudei de estado, me arrependi e chorei trezentos e sessenta e cinco dias seguidos. Você me compreendeu em todos eles e de novo, eu te escolhi. 
Sei que prefere ficar em casa, ficção científica, Frank Herbert e Bucowski. Eu prefiro sair, drama, Antônio Prata e Luis Fernando Veríssimo. O que seria do amarelo se todos gostassem de vermelho? Te escolhi. 
Você encontra-se na bagunça, eu tenho obsessão por organização. Não, nesses momentos eu não te escolho. E não te escolho em muitos outros. Às vezes, tenho vontade de jogar uma daquelas cadeiras pesadas da sala em sua direção. Principalmente quando age com a cabeça dura ou resolve falar alto demais para os padrões de uma mulher que foi criada sem homens em casa. Ah, e quando eu - também cabeça dura - ignoro o mundo, quebro a cara e você aparece com "eu disse...". Então, eu não te escolho. Por algumas horas. Depois eu choro, porque na verdade, fico com saudades, lembrando que te escolhi.
Por você ser a pessoa mais inteligente que eu já conheci. Por não precisarmos fingir: eu durmo de meias, durmo no meio dos seus filmes preferidos e durmo durante as conversas noturnas. Porque com você, o silêncio não é inoportuno. Porque temos liberdade de falar sobre qualquer assunto. Porque já passamos juntos por momentos espetaculares. Porque já passamos juntos por momentos terríveis. Porque você compra as minhas brigas. Porque seus olhos mudam de acordo com seu humor. E porque, mesmo a cor dos meus não mudando, você sabe reconhecer os dias em que eu não quero falar. Porque você prefere meu cabelo do jeito que ele é, meu corpo do jeito que ele é e a Nurit do jeito que ela é. Eu te escolhi.
Nos próximos dias, serão onze anos desde o dia em que eu disse que nós pertencíamos um ao outro. Eu não te pertenço, mas te escolho todos os dias da minha vida.

sábado, 14 de junho de 2014

Mais perto que a China

Era um domingo de sol. Minha mãe estava grávida de muitos meses e, precisando de um tempo para descansar (eu demorei anos para entender que mães definitivamente precisam de um tempo para descansar) pediu a meu pai, um homem na faixa dos trinta e muitos anos, industrial respeitado, esportista incansável e com aptidão bastante incipiente na arte de cuidar dos filhos, que fizesse um programa comigo, então com sete anos e com minha irmã, dois anos mais nova.
Acho que o cansaço de minha mãe era tanto que, mesmo ciente dos riscos da situação, ela conseguiu relaxar numa época em que telefone celular era, no máximo, artefato do desenho dos Jetsons. Até aquele momento, nossa relação com meu pai resumia-se confortavelmente a beijos de boa-noite, almoços de domingo na casa da minha avó e - emoção das emoções - comemorar as vitórias do Brasil na Copa de oitenta e seis com a cabeça para fora do teto solar do Monza dele, rodando pelas ruas de São Paulo.
A idéia era passear no Parque do Ibirapuera. Delícia. Poderíamos comprar sorvete, alugar uma bicicleta ou brincar em frente ao lago. 
Talvez seja puro saudosismo, mas o parque nos anos oitenta tinha as árvores mais verdes, o ar mais puro e as ruas mais tranquilas. Passeamos um pouco e, provavelmente no intuito de vencer o tédio, meu pai, sempre criativo, teve uma excelente idéia:
- Já sei! Vamos brincar de esconde-esconde!
(Pausa da menina de sete anos que cresceu e hoje tem dois filhos: brincar-de-esconde-esconde-no-parque-do-ibirapuera. Inspira. Expira. Prossigamos).
- Legal! Gritamos em coro
- Primeiro você, Nurit. Mas não vai longe, hein?
O que é longe para uma criança se, cavando um buraco na areia, você podia chegar até a China? Andei por um tempo procurando um esconderijo menos óbvio que atrás de uma das cem mil árvores do parque, até que avistei uma lata de lixo enorme. Perfeito. Detrás dela, conseguia enxergar meu pai e minha irmã, que tinham o tamanho aproximado de duas formigas.
E eu os observava indo, vindo, indo, vindo, indo... Basicamente, eu tinha arrasado, seria a grande campeã da brincadeira. 
Não sei quanto tempo se passou. Na minha opinião, o tempo de um recreio. Na do meu pai, que ele deve ter compartilhado na terapia mais tarde, umas três horas e meia.
Comecei a notar um tom de desespero nos passos dele. Provavelmente, pensei, leonino que é, não gosta de perder. Esperei mais um pouco. Mais um pouquinho ainda (também sou leonina). Quando estava quase dormindo e já com vontade de fazer xixi, resolvi aparecer.
- Vocês não são de nada, só comem marmelada!
Nós sabíamos exatamente o momento de ficarmos quietas e, além dos gritos, a cor vermelha do rosto do meu pai indicava que este era um deles. Obedecemos, demos as mãos e baixamos a cabeça.
- Pai, posso comprar um DipnLink?
Não, minha irmã definitivamente não sabia reconhecer estes momentos.
- Compra, vai, compra logo
- Oba!
Então ela mergulhou o pirulito no açúcar, lambeu e, num descuido, deixou tudo cair no chão.
Berreiro. Chiliques. Entrem no carro. Silêncio. Vamos para casa.
No final da tarde, espiei por trás da porta do quarto dos meus pais. Minha mãe arrumava algumas roupas, enquanto meu pai, largado na cama, pálido, repetia "sozinho, não mais, hein?!".
Mal sabia ele que, poucos anos mais tarde, passaria a endossar o grupo dos pais separados que passam, final de semana sim outro não, dias inteiros sozinho com os filhos. Mas daí é outra história. No plural.

PS.: Te amo, pai