quinta-feira, 31 de julho de 2014

Patotas

Clara estava animada com aquele convite. Reencontraria a turma da faculdade após dez anos e finalmente conversaria sobre assuntos interessantes entre pessoas que pensavam como ela.
Nos últimos tempos, seus amigos passaram a ser os pais dos amigos de seus filhos, pessoas cujas afinidades resumiam-se a dissertar sobre a didática da professora, a linha pedagógica do colégio, a malignidade do glúten e a mãe do Fabio que não tinha vergonha na cara. Era isso: ela pensava em seus filhos vinte e quatro horas por dia e sua vida social também resumia-se a manifestos maternos.
Com a premissa de comemorar as bodas da formatura, finalmente seria despertada a Clara que levantava bandeiras, que devorava livros em cuja capa não constavam barrigas de nove meses, que discorria sobre assuntos culturais diversos e que cantarolava músicas da Adriana Calcanhoto ao invés da Partimpim. Sabia que, da antiga turma, poucos sequer estavam casados e certamente mantinham o ar reacionário de outrora, tempo em que ela também avaliava seriamente a possibilidade de mudar o mundo. Até conhecer o Rodrigo, casar, engravidar, fazer cursos de papinhas orgânicas e mudar o seu mundo.
No dia do encontro, Rodrigo ficara encarregado de cuidar das crianças e, ainda beliscando-se para checar a veracidade do momento, Clara bateu a porta de casa e saiu. Voltou horas depois, um pouco antes da meia-noite.
- Já?
- Sim. Acredita que hoje em dia tem trânsito neste horário?
- Como foi o encontro?
- Demais!
E discorreu sobre a emoção de rever antigos amigos, sobre como pouco haviam mudado. Discutiram sobre os tempos atuais, relacionaram Maquiavel com Simone de Beauvoir, Baudelaire com Valeska Popozuda e pré-sal com festa rave. Um pouco depois do início da animada conversa, chegou a Julia, pedindo desculpas pelo atraso e já dando as boas novas: estava grávida. Todos ficaram felizes, brindaram com seus copos de cachaça enquanto a gestante pedia uma água sem gás. Clara mal pôde conter a emoção. Chamou Julia para sentar a seu lado e iniciaram uma animada conversa sobre enjôos matinais, planos de parto e peças indispensáveis no enxoval. Como a conversa dos demais estava muito alta, elas logo mudaram-se para outra mesa, na ala de não fumantes. Ainda pediram um café descafeinado antes de despedirem-se do resto do pessoal que àquela altura, falava sobre sei lá o quê. Na saída, combinaram de encontrarem-se novamente. Tinham muitos assuntos em comum e de fato, Clara ainda precisava falar com ela sobre sobre linhas pedagógicas, a malignidade do glúten e, quem sabe, apresentá-la para as mães dos amigos de seus filhos.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Ideologia: aplicação prática

"Se beber, não dirija"
(Sabedoria popular)

- Alguém escutou a campainha?
O papo estava tão animado, que não sabiam ao certo se o som era real ou fruto da imaginação, após alguns - vários - goles de espumante. Eram três casais que organizavam encontros sempre divertidos. Pediam pizza, bebiam, gargalhavam. Falavam sobre as ações, a novela e abobrinhas em geral, antes do papo das mulheres invariavelmente recair sobre o trio casa-filhos-empregada. Todos casados havia mais de uma década, tinham uma relação agradável desde os tempos de namoro, quando os meninos eram colegas na faculdade de engenharia mecânica. Primeiro a Renata conheceu o Rubens, depois a Paula encantou-se pelo Roger e por último, a Cristina conquistou o Julio. Pena mesmo era o Marco, que fora passar uma temporada na Europa e acabara ficando do lado de lá do oceano. Justamente por isso, esta noite seria diferente: finalmente o quarteto estaria completo e as esposas conheceriam o famoso dissidente da turma.
- Acho que tocou sim
- Deve ser o Marcão
Julio, o anfitrião da vez, foi abrir a porta
...
- Fala cara!
E todos levantarem-se. A comoção foi geral. Não se viam desde... nossa, uns quinze anos. Abraçaram-se, apresentaram a Rê, a Pá e a Cris. 
- Senta. Que saudades. O tempo não passou para você!
- Passou, passou tão rápido que nem percebi
Marco de fato parecia não ter sentido a passagem do tempo. Sua pele tenaz e a barba por fazer conferiam a ele uma aparência bem jovem. Demais até.
- E o que você tem feito?
- Passei os últimos cinco anos viajando pelo continente africano, defendendo algumas causas importantes...
E o recém-chegado passou a hora seguinte discorrendo sobre a guerra, a miséria e as campanhas humanitárias. E - fato intrigante - sequer escutaram a voz das mulheres.
Na realidade, Paula estava corada, Renata não sentia as pernas e Cristina ainda não tinha conseguido piscar os olhos. Quando a pizza chegou, seguiram direto para a cozinha onde, pela primeira vez na última hora, trocaram algumas palavras:
- Que homem é esse?
- Que homem!
- Uau!
Retocaram o gloss, arrumaram os cabelos, encolheram a barriga e voltaram para a sala.
No encontro seguinte, insistiram para que convidassem o Marco. Afinal, ele ainda tinha muito a discorrer. E as noites passaram a ser cada vez mais elaboradas. A pizza virou bruscheta de berinjela, o gloss virou sapato de tecido eco-sustentável e o casa-filhos-empregada, utopia-humanitária-hypster. O novo anfitrião, cada vez mais à vontade, ignorava todos o protocolos da classe média. 
Na segurança da cozinha, as mulheres cada vez mais apaixonadas
- Não apaixonadas, encantadas
- Não encantadas, intrigadas
E discorriam sobre todo o tipo de papo normalmente reservado a banheiros femininos. Não podiam furtar-se de trair em pensamento, imaginando a vida ao lado daquele ser de charme intelecto-neandertal, comendo tofu no café da manhã, amando loucamente segundo os preceitos do tantra e discutindo política em mesas de botecos, dentre outros pormenores fantasiosos.
Uma noite, Marco anunciou que tratraria sua nova namorada, Luciclei.
- Luciclei?
- Ahã. O que tem? Perguntou Julio
- Não, nada.
Quando abriram a porta, Luciclei apareceu, de mini vestido vermelho, cabelo loiro platinado pela cintura e risada extravagante. Durante a noite, discorreu sobre a novela, a nova namorada do Rodrigo Santoro e como evitar rasgos em meia calças. Todos apenas escutavam.
Na realidade, Julio estava corado, Rubens não sentia as pernas, Roger ainda não tinha conseguido piscar os olhos e Marco não desviava o olhar do decote vermelho. Foram apenas interrompidos com um bate-papo vindo diretamente da cozinha. Achavam ter escutado "logo o Marco".
- Que?
- Nada, é que o risoto de pupunha queimou
- Queimou?
Foi quando Cristina reapareceu, já de pantufas:
- Pois é. Todos comem pizza de catupiry?

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Life is...

Sou Lennon-maníaca, por mais pop que isso possa parecer.
Passei minha adolescência ao som dos Beatles, com pôsteres de décadas anteriores à minha na parede e achando que Imagine era a obra-prima da indústria musical. Minha referência ideológica passava certamente por John e a Yoko protestando na cama por uma semana, pura utopia de paz e amor.
Daí eu cresci, casei, mudei, paguei contas, tive filhos e a vida passou a ser mais pragmática. De Imagine, hoje, curto apenas a melodia e uma semana na cama, passou a ser utopia de férias incríveis. 
Mas ainda tem uma estrofe que me emociona, daquelas que a gente canta bem alto, por pura admiração: "Life is what happens to you while you are busy making other plans". De fato. A vida é o que acontece enquanto estamos ocupados traçando outros planos.
Tocante. Eu almoço pensando que o queijo ralado acabou e só irei ao supermercado depois de amanhã. Olho as crianças correndo pelo jardim lembrando que é tempo de adubar os hibiscos. Falo ao telefone rascunhando possibilidades na agenda da semana e assisto televisão pensando na morte da bezerra, da vaca e da égua. Sempre fazendo outros planos.
E a vida passa assim.
Seria tocante continuar o texto com promessas de uma nova vida e frases prontas do tipo 'respire fundo, sinta a brisa e use protetor solar', mas não. Simplesmente vou admitir que o privilégio de viver com a cabeça livre, leve e solta é para uns poucos sortudos. Assim como filhos que dormem a noite inteira antes de completar seis meses e irmãos que jamais gritaram 'nunca mais fala comigo na sua vida' um para o outro. A gente escuta um caso aqui, outro lá. Inclusive, ontem soube de um amigo do primo da minha cunhada que tem um bebê que é um anjo: mama, dorme e brinca sozinho por mais de vinte minutos.
Mas a vida real, minha e das pessoas que conheço - de carne e osso - é cheia de atropelos. De felicidade entremeada por ansiedade. Satisfação e correria. Alegria e loucura.
Eu sou Lennon-maníaca, mas fico com a beleza dos seus versos e uma taça de vinho toda noite. Para relaxar a cabeça de tantos pensamentos que não respeitam ordem cronológica. E me redimo: nunca passei uma semana cama e meus filhos só dormiram a noite inteira depois dos seis meses. Entre outras peculiaridades da vida real.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

De 2014 para 1968

Queridas mulheres,
Amanhã vocês participarão de um concurso de miss e, como forma de protesto à situação da mulher, planejam queimar soutiens. Por isso escrevo esta carta, direto do futuro, para contar:
O tiro saiu pela culatra!
Pois é. Sei que a intenção de vocês é das melhores, que é insustentável nossa situação oprimida numa sociedade machista e tal. De fato, conquistamos direitos, postos de trabalho e nem sempre somos chamadas de histéricas quando opinamos de forma contundente. Sim, opinamos e isso é um ganho e tanto.
Mas mesmo com toda esta transformação na sociedade, acreditem: nossas casas continuam sujando, pastas de dentes ainda não proliferam por osmose nos armários, filhos não se criam sozinhos e maridos pedem canja quando estão doentes. Mas agora, nós temos que trabalhar para complementar a renda familiar. Não somos artistas, vanguardistas ou idealistas. Somos proletárias. Batemos cartão, temos metas e almoçamos com ticket refeição. Enquanto isso, lá em casa, a roupa acumula, a funcionária não apareceu, ainda bem que sua mãe tirou o dia para cuidar do bebê, a pasta de dentes acabou e terá pizza congelada para o jantar. Culpa aqui e culpa lá. Freud jamais poderia sonhar com tamanha popularidade no século XXI.
Vocês devem estar se perguntando: e os homens? Ajudam mais, mudaram sim. Mas ainda detestam trocar fraldas, não tem glândulas mamárias e apesar de terem virado gourmets, raramente sabem que para o arroz ficar soltinho, precisa ser cozido em fogo baixo. Fora que, conviver com uma parceira poderosa ao lado, não é coisa pra qualquer macho.
Entendem? Está tudo atrapalhado. Claro que existem mulheres felizes com esta situação toda, mas, se vocês não queimarem os soutiens, elas serão a vanguarda de nossa classe. Um título interessante. Quanto ao resto de nós, deixem-nos trocar receitas de ovo poche, levar nossos filhos na escola e fazer artesanato. Sem peso na consciência. Se der, trabalharemos meio período. Um plus. E usaremos o dinheiro extra para algo que não seja bancar babá, foguista, enfermeira e motorista.
Sei, sei, tem a questão dos padrões de beleza impostos. Então deixa eu contar: vocês terão descendentes intitulando-se mulheres-morango, melancia e jaca. Se o nome não for auto explicativo, eu esclareço: deu mesmo tudo errado! Até nós, mais básicas e pós-graduadas sabemos que 250ml de silicone ficam super proporcionais, que o blush da MAC é incrível e todos as demais artimanhas sensuais.
É século XXI, mas homens ainda gostam de bunda, mulheres ainda não gostam de dividir a conta e crianças ainda passam a primeira infância gritando do banheiro "Manhê, acabei!".
Portanto, amanhã, peço singelamente: desfilem. Mandem beijos. Ou fujam do padrão - individualmente, sem rebeldia - desde que fiquem graciosas para a história. Porque nós, do futuro, não estamos dando conta de tudo-ao-mesmo-tempo-agora.


quarta-feira, 16 de julho de 2014

Idade: vide bula

Vinte anos. Pode usar mini saia. Decote descuidado é charme. Pode opinar, mas não espere ser levada a sério. Flerte à vontade. Não ceda à primeira cantada. E sem mãos no primeiro encontro. Pode gostar de vampiros. Pode viajar com o namorado (mas deixe o celular ligado). Pode dirigir à noite. Pode ficar doente. Pode beber, você já é maior de idade.
Trinta e cinco anos. Mini saia nesta idade? Amamentar em público é polêmico. Pode opinar. O livro da Encantadora de Bebês é bárbaro. Cinco malas para passar o final de semana fora. Tem café descafeinado? Não pode ficar doente (nem dá tempo). Pode conversar sobre política, mas o papo vai acabar em 'casa e empregada'. Beber é mau exemplo, tem suquinho na geladeira.
Cinquenta anos. Mini saia é falta de simancol. Decote abusado também. Deve opinar. Pode escolher o canal de televisão. E o filme no cinema. Flerte sem ser vulgar. Ceda à primeira cantada. Sem ser vulgar. Pode viajar com o namorado (e desligar o celular). Não pegue no pé de ninguém. Mas não seja ausente. Pode beber se a bula do remédio permitir.
- Que saco!
- É...
- Essas regras. Deveria ao menos haver uma idade em que pudesse tudo
- Relaxe
- Não da pra relaxar
- Você bebeu demais?
- Talvez
- Vamos para casa
- É, acho que não tenho mais idade...






terça-feira, 15 de julho de 2014

Forma, conteúdo e rúculas

Ontem escolhi um livro entre as gôndolas do Zaffari. Tuppewares, papel alumínio, livros. Livros? Livros!
A capa, o título e a autora despertaram minha atenção, mesmo expostos sem charme algum sob luz branca, em estante de alumínio, com 'My name is Luca' tocando ao fundo.
A princípio, me senti herege, mas logo desapeguei da culpa, afinal, não estava comprando Paulo Coelho. Na verdade, minha classificação estava para algo entre 'Dona Maricota' e 'Nossa, a vida anda corrida'. Foi uma compra por impulso. Mas se dentistas, vez ou outra, dormem sem passar fio dental, eu também tenho o direito de ser manipulada por meus colegas do marketing.
Não li o prólogo ou a dedicatória. Não folheei. Coloquei no carrinho e segui em direção às massas. Esqueci.
Fui lembrar dele no final da tarde, perdido no saco plástico, em meios a rúculas e tomates. A funcionária de casa, que ajudava a desempacotar as compras, olhou com estranhamento.
- Você é vingativa?
- Não eu, a Claudia Tajes
- Ah...
Sorri com simpatia, tentando não macular minha imagem em tempos de PEC.
Mais tarde, parei em meio ao caos, ignorando as crianças aos berros argumentando que alguém havia puxado o cabelo de alguém e o cachorro que mordia a sola do meu sapato.
Li o prólogo, a dedicatória e folheei. Teria escolhido aquela leitura mesmo sob meia luz e estante de madeira.
Fiquei feliz e passei a adorar a idéia. Até agora, minhas compras por impulso resumiam-se a chicletes, pilhas e um ventilador descartável da Hello Kitty ("Ah mãe, compra, por favor, eu juro que nunca mais te peço nada").
O livro continua cheirando a rúcula, mas quem se importa? Afinal, a Dona Maricota tem carisma e vida anda mesmo corrida.



domingo, 13 de julho de 2014

Protocolando

- De novo?
- Por que?
- Cansa. Todo sábado, almoço com seus pais. Domingo, sua corrida matinal...
- Mas...
- Fora o futebol no final de tarde e a pizza pra fechar a semana 
- Não sabia que incomodava tanto
- Claro que sim. De vez em quando, vá lá, mas sempre?
- O que você gostaria de fazer?
- Qualquer coisa, menos isso
- Qualquer?
- Eu ansiava por uma vida cheia de emoções. Acordar com um café da manhã surpresa na cama, viagens românticas pela serra, serenatas de amor...
- Mas eu até te carreguei nos braços em nossa noite de núpcias
- Isso é protocolo
- Achei que fosse romantismo
- Eu queria um roteiro a la Woody Allen, uma temporada a dois em Nova York ou até, ser surpreendida com um final de semana em Barcelona
- Ah, claro. Desejos modestos...
- Tá, tá, exagerei. Quis dizer que falta novidade, sabe? 
- Poxa
- Sempre esse arrozinho com feijão
- E não é sua comida preferida?
- Enjoei. Quero frango com polenta
- Ufa! Achei que fosse caviar
- É sério Marco Antônio, é sério...
- Amorzinho, eu te amo
- Então, pelo bem do nosso casamento, chega de rotina
- Ahã
- De ter hora marcada para tudo
- Pode deixar
- Me surpreenda!
- Vamos hoje assistir aquele filme, que você tanto queria?
- Hum, estou gostando
- E jantar à luz de velas, no restaurante italiano do centro?
- Vamos!
- Vou tirar esta roupa suada e tomar um banho...
- Mas...
- O que?
- Não demora. Preciso voltar para casa até as nove, não quero perder a novela e você sabe, se eu dormir depois das onze, acordo com dor de cabeça 

terça-feira, 8 de julho de 2014

Papéis de carta

Eu tinha sete anos, era meiga, comportada e trocava papéis de carta na hora do recreio. Ele tinha a mesma idade, mas colecionava advertências no colégio - a versão infantil do tradicional cafajeste.
Até hoje não tenho certeza sobre qual dos atrativos o fez abdicar da vida de pular muros e falar palavrões em sala de aula: se foi meu jeito doce, o penteado chanel com franja ou a fantasia que meus pais me faziam usar em todos os eventos carnavalescos da infância:
- Eu estou de Branca de Neve. E você?
- De Melindrosa
- O que é isso?
- Não sei
A tal fantasia, feita em caráter exclusivo e sob medida na fábrica de lingerie do meu pai, consistia num corpete de renda com enchimento no soutien, adornado por penacho na cabeça, meia calça arrastão e cinta liga (sim, cinta liga). Para completar a posterior necessidade de terapia, minha mãe pedia que eu fizesse pose de Can Can para registrar tais momentos.
Então, certa vez, saindo da aula após uma chamada oral de tabuada, um amigo veio entregar o papel de carta brilhante dobrado. Detalhe: o papel de carta brilhante está para os anos oitenta assim como a figurinha do Neymar no álbum da Copa está para os tempos atuais.
"Quer namorar comigo?", em letras pré-alfabetizadas.
Querer eu não queria e como sempre tive facilidade em impor minhas opiniões:
- Responde que sim
A partir do dia seguinte, não fazia mais castelos de areia ou pulava amarelinha na hora do recreio. Eu andava de mãos dadas. Na educação física, ninguém podia atirar a bola em mim durante o jogo de queimada e na aula, trocávamos olhares. Longos. Infinitos. O negócio estava sério, apesar de um pouco chato.
Algum tempo passou e certo de seus sentimentos, outro papel de carta dobrado.
"Quer casar comigo?"
Bom, não deve ser tão difícil assim. Apesar dos adultos viverem dizendo que a vida era complexa, eles não precisavam ir para a escola, não ficavam ansiosos se seriam os últimos escolhidos para o time de pique bandeira e nem tinham que decorar a tabuada. Estava pronta para este mundo. Além do mais, provavelmente poderia continuar morando com a minha mãe.
- Pode ser
No recreio posterior, tirei minha saia de tule e camiseta branca da mochila para, sob olhar de alguns amigos, nos casamos antes do sinal tocar. Teve rabino mirim, buquê e copo de plástico quebrado. Até ganhei uma caixinha de música e um perfume de alfazema. Agora era pra valer, ai de quem encostasse em mim na queimada.
O tempo passou. 
Até que dois dias depois, cansada da rotina de mãos dadas e invejando as brincadeiras das meninas, chamei o amigo de sempre:
- Diz pra ele que quero me separar
Ele foi. E voltou com um papel de carta. Dobrado.
Não abri. Tinha medo de que ele estivesse dando um aviso "vou te pegar na saída". Fui descobrir a mensagem alguns dias depois, na sala da diretora, com minha mãe explicando que por causa da carta eu estava com medo de ir para a escola.
"Mesmo você não me querendo mais, vou te amar para sempre". Um coração com uma lágrima dentro.
Uma semana depois, ele estava casado com outra menina. E eu voltei à minha rotina de trocar papéis de cartas:
- Posso. Posso. Mais ou menos. Não posso. Posso.
- Voce pode este brilhante?
- Ahã
- Uau!
E eu, com perfume de alfazema, achando graça na ingenuidade das meninas que ainda gostavam de papéis de carta sem declarações de amor.