terça-feira, 30 de setembro de 2014

Alô polícia, eu tô usando...

Antes mesmo de sabermos escrever nossos nomes, já fazíamos em grupo a coreografia de 'Não se reprima'. Roy e Ricky cantavam freneticamente disputando a preferência do toca discos apenas com o pato, a foca e a coruja que habitavam a 'Arca de Noé'. Mais tarde, decoramos o alfabeto, lembrando que a era amor, bê, baixinho e cê, coração. Se você fora um bebê Johnson's, agora provavelmente transformara-se numa potencial paquita (existia paquito?). Mas de qualquer forma, como não havia garantias de mandar um beijo pro seu pai, outro para a sua mãe e mais um 'para você', tratou de decorar o primeiro telefone da sua vida - 236-0873 -, na eterna esperança do número chamar e você ganhar uma Caloi. 

Se alguém da sua classe tivesse muitas canetas coloridas no estojo, certamente seriam importadas. Esta palavra, antes da China-mania, exercia verdadeiro fascínio aos olhos infantis. No mundo importado habitavam a Hello Kitty, os adesivos com glitter, o videocassete com controle remoto e o microondas. Os meninos, que desde sempre foram vidrados em carros, sabiam de cor e salteado as cinco marcas que existiam no mercado à época e conversavam sobre o assunto no recreio, enquanto as meninas batiam papéis de carta.

Quando os pais saiam sábado à noite, era o momento de ficar acordada até tarde assistindo Viva a Noite, viva, viva e cantando a onda da galinha azul. Mas bom mesmo era faltar na escola, encostando a parte de mercúrio do termômetro no abajour. Com sorte, 'A Coisa'  ou 'Os Goonies' passariam pela primeira vez na televisão.

Você era muito moderna de calça semi baggy, Keds, cabelos para o lado e topete. Jogava pogobol à tarde e já podia frequentar matinês das baladas. Alguns meninos poderiam sussurrar ao seu ouvido "meu amigo quer ficar com você" ao som de Dance Music e passos para lá e para cá. E sabia dançar muito bem, afinal, não perdia um bailinho da escola e raramente ficava com a vassoura, enquanto o dj tocava Like a Virgin e Calcinha Exocet.

Se é meu contemporâneo, gravava músicas do rádio na fita cassete, teve walk-man, tamagoshi, decorou como conseguir mais moedas no Super Mario Bros, vibrou com o 486 e muito mais tarde, o início da parte liberal e independente da sua vida teve como pano de fundo cinco inseparáveis amigos de Manhattan.

Podem chamar os anos oitenta de bregas e os noventa de 'quase tanto quanto'. Mas foram tempos incríveis. E nós saímos praticamente ilesos.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Tempero a parte

Cada pessoa utiliza seu método peculiar de relaxamento. Não vou criticar os adeptos do Rivotril sublingual afinal, eu mesma utilizo métodos pouco ortodoxos para deixar os pensamentos em slow motion - depois de abandonar anos de vida fumante, não abro mão da boa e velha dose etílica noturna. Mas acho interessante observar as formas mais criativas que cada um encontra para separar as obrigações do lazer.
Tem que mateie. Sim, verbo: eu mateio, tu mateias, ele toma chimarrão. Há os que espantam o stress levantando centenas de quilos em troca de suor e músculos. Tem quem leia ou escreva. Os que vão ao cinema e escolhem o filme (prática que desconheço há anos). Já ouvi falar de gente que só com sexo recreativo. Quem faça compras, escova, massagem. E os que utilizam métodos ainda menos ortodoxos que os meus.
Certa feita (desculpem, sempre quis começar uma frase assim), conheci uma moça que precisava sair do trabalho e apaixonar-se antes de voltar da casa. Pois é, batia o cartão e passava a buscar uma paixão. Lembro da noite em que apaixonou-se por uma escritora baiana, em plena sessão de de autógrafos na livraria da Alameda Santos. Entrou, pediu uma dedicatória, leu o livro inteirinho, voltou para casa, cozinhou com azeite de dendê e foi dormir. Às vezes, tinha que dar  explicações ao marido:
- Onde estava até esta hora?
- Procurando uma paixão.
Vícios são vícios e ele a aceitava como sempre fora, apesar de certa frustração. Ela já tinha se apaixonado por tulipas holandesas, café gourmet do serrado, mostra de cinema russo e pasta americana para cupcakes. Uma vez, saímos para colocar o papo em dia após o trabalho. A certa altura, eu já bocejava e cogitava pedir a conta, mas ela ainda estava aflita: sem paixão, não tinha como relaxar. Releu o cardápio, buscou algo nas mesas ao lado. Nada. Saímos para uma volta no quarteirão. Uma companhia de teatro alternativa fazia uma performance no farol. Olhei entusiasmada para minha amiga: sem calafrios. Na esquina, o lançamento de um empreendimento imobiliário. 'Quer parar?'. 'Os sinos não tocaram'. Desistimos. Ela voltou para casa, já pronta para passar a noite em claro, com os pensamentos a mil. Mas neste dia, o marido a esperava na sala. Seu coração disparou de alegria e alívio: estava apaixonada, incrivelmente seduzida. 
- Precisamos conversar.
Ela, louca por ele, escutou a história. Ele, por um viés da vida, conheceu uma escritora. Baiana. E estava apaixonado. Ela ofereceu cozinhar tapioca. Não era isso. Com acarajé e dendê. Não era fugaz. E ele partiu. 
Já faz alguns anos isso. Ela buscou tratamento, recuperou-se de seu irônico destino e hoje não corre mais riscos. Sai do trabalho e segue direto para casa. Cozinha, assiste a novela e antes de dormir, um relaxante sublingual. Sem café do serrado, cinema russo ou dendê. Para que a vida siga como deve ser.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Passaporte marciano

PASSAPORTE MARCIANO

Esta semana acontecem os festejos da semana Farroupilha no Rio Grande do Sul e coincidentemente, planejei passar os últimos dias em São Paulo. Que me desculpem os adeptos ao fogo de chão, mas uma pizza assada em forno a lenha veio bem a calhar. Explico.
Eu mudei apenas de estado e tento ao máximo adaptar-me à cultura local. Mas se a regra de etiqueta manda que em Roma, façamos como os romanos, a vida prática atesta: em Roma, você jamais passará de um marciano. Adoro o sul, mas nunca consegui emocionar-me com a chama crioula ou com a possibilidade de ver meus filhos pilchados. Sou uma pessoa com sotaque, o que atesta: 'tu não és daqui'. Não. Tenho casa, amigos e referências, mas não sou de lá.
Com profusão de mães orgulhosas postando fotos de suas filhas vestidas de prenda, lembrei de uma brasileira na Alemanha comentando estes dias que não conhece as cantigas de roda que sua filha, nascida do lado de lá do oceano, pede que ela cante. Não importa se mudou de país, estado ou bairro, você ganha status de marciano.
Acontece que em sua terra natal, você deixou de ter casa. E a culpa não é (só) das exorbitantes cifras imobiliárias. Seu lar mudou de endereço, seus amigos tem muitos novos amigos, além de filhos cujo nome você esquece e lá você também passa a ter sotaque. 'Você não é daqui'. Sou, sim. 'Estranho'. 
Mas antes que tu, você ou you limpe sua primeira lágrima, vou esclarecer o teor do texto: 
Que maravilha!
Passado o choque inicial de não poder frequentar a mesma padaria que sua família frequenta há cinco gerações, perde-se um pouco as amarras. Vou comer pizza porque não gosto de churrasco no espeto, mas depois volto, porque a Marginal está com um fluxo terrível. Sou daqui e de lá, além de que amanhã, posso estar acolá. 
Se eu prefiro São Paulo ou o Rio Grande do Sul? Escolho o sul. Mas tenho passaporte de marciano.
Afinal de contas, o mundo está cheio de padarias. E sotaque eu já tenho.


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Castelos de areia

- Inacreditável a cor do mar...
- Inacreditável mesmo é estarmos aqui, sozinhos, após tantos anos.
- Será que as crianças estão bem?
- É claro que sim. Vamos relaxar.
- Tem razão. Curtir essa areia branquinha...
- O Pedrinho iria adorar. Construir aqueles castelos enormes.
- Para a Laurinha brincar com as bonecas dela.
- Fantasiando sobre mundo encantados.
- Ai, ai...
- Tão bom termos tempo para conversar.
- Verdade. Olha, um rapaz vendendo queijo coalho!
- Se o Pedrinho estivesse aqui, já pediria três.
- Sempre, sempre. E a Laurinha escolheria um sorvete.
- De limão!
- Tirou as palavras da minha boca.
- ... 
- Delícia de temperatura.
- Ahã. Olha aquele bebê. Que fofo.
- Parece o Pedrinho quando era pequeno.
- Olhar sapeca, lembra?
- Claro. Como se fosse ontem.
- Acredita que passaram-se dez anos?
- O tempo voou.
- Demais.
- Anos incríveis. 
- Muito.
- Mas senti falta de passar um tempo só com você.
- Eu também. A gente acaba passando a vida em função dos filhos, né?
- Verdade. 
- E é bom podermos relaxar, namorar...
- ... conversar com calma sobre os mais diversos assuntos.
- ...
- ...
- ...
- Tem razão. Lembra daquela vez, com a Laurinha...


quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Dama, rei e curinga

Celso e Isabel estavam juntos há mais de vinte anos e eram, um para o outro, uma agradável companhia para passeios vespertinos, matinês no cinema, além da tradicional macarronada de domingo em família. Novidade não havia, mas viviam plácidos o dia-a-dia. Como seus filhos já não passavam muito tempo em casa, costumavam organizar encontros com casais amigos para animados campeonatos de tranca. Nestas ocasiões, o furor competitivo dos participantes era instigado. 
- Celso, você tinha um valete.
- Mas que nada. Bati direto.
- Levante, quero ver se não escondeu a carta.
- O que Aurélio? Está duvidando da minha idoneidade?
E a testosterona reprimida nas matinês dos filmes água com açúcar ficava evidente na sala do apartamento anfitrião, fazendo tremer os bibelôs da mesinha de canto. As esposas corriam para acalmar os ânimos, oferecendo água com açúcar e repetindo a recomendação médica "Olha o coração, olha o coração". A não ser Isabel. Algumas mulheres até achavam que o sorriso de canto exibia certo prazer:
- Isabel, o Celso vai ter um troço.
- Não vai não, ele está bem.
Naquelas noites, Isabel enxergava um traço neandertal em Celso e por isso, ela sempre tratava de cuidar para que houvesse café passado na térmica, petit-fours doces na sala e lingerie preta sob a roupa. Como os casais jogavam em dupla, ela, vez ou outra, para quebrar a monotonia, descartava um curinga:
- Isabel, você viu a carta que você jogou?
- Ai, Celsinho, foi sem querer.
- Ah, mulher, faça me o favor!
Celso batia nervoso na mesa. Isabel sorria de canto. A noite prometia.
Acontece que, com o passar dos anos, os filhos casaram e os netos começaram a chegar. A família voltou a frequentar a casa de Celso e Isabel e, bastava eles pensarem em agendar um campeonato, para o telefone tocar:
- Mãe, você pode cuidar da Julinha este sábado?
Ninguém entendeu quando Celso arrumou as malas e saiu de casa. 
- Deve ter arrumado outra.
- Pobre Isabel.
E o tempo passou. 
Celso, da euforia inicial de homem livre, leve e solto, passara à reclusão. Saia pouco e os amigos apostavam quem se tinha abandonado a esposa por outra, agora já estava sozinho. 
Um dia, o telefone de Isabel tocou:
- Bel?
- Celso? 
- Eu...
- Como você tem coragem de me ligar?
- Bel, deixa eu falar... Vamos nos encontrar.
- Nunca mais me ligue.
- Um passeio vespertino?
- Me esqueça.
- Estreou um filme ótimo...
- Passar bem.
- Tem aquele restaurante...
- Adeus.
- Uma partida de tranca?
Isabel não conseguiu resistir ao convite. E depois de descartar dois curingas eles tiveram certeza: eram dama e rei do mesmo naipe. E bateram direto.